colégio interno

 

eu volto ao mesmo lugar

quando quero ficar em paz

ou quando sinto que uma transformação se aproxima 


as folhas brancas das arvores de algodão 

a pista de corrida improvisada

os bancos vermelhos de cimento no meio do nada


hoje eu voltei até lá de novo

para tentar descobrir o que deixei para trás 

qualquer coisa que afeta diretamente minha vontade de viver 


sinto que estou devendo algo para a menina Bárbara

talvez um pouco de vida, de gratidão 


alguma peça do meu quebra-cabeças se perdeu no caminho


suspeito que tenha ficado lá

enquanto eu achava que não doía

e dizia pra mim e pros outros que nunca houve trauma

que nunca houve crise


sempre esteve tudo sob controle

menos quando entreguei os pontos

e sem perceber perdi boa parte da alegria, da vontade, do tesão que deveria me inundar a essa altura da vida


quantas vezes fui inteira nesses últimos anos?

é possível se sentir inteira nesse mundo?


caminho pela grama extensa

sento no banco do refeitório 

ainda bem que ainda há tempo


por enquanto 


é tempo de resgatar a vontade perdida


já se passaram mais de dez anos

quantas vezes mais será necessário voltar até lá?


Escrito em 09/03/2020

por pensar que estava vivendo
e que momentos valiam mais que poemas
dei um tempo

mas o relógio da poesia
tal qual o coração
não para
se para, morre
e vivo, sente

sente vinte e quatro horas
o espanto
a ternura
a euforia
a voz calada à força

e no silêncio fingido
a poesia continua
pulsando muda
como o sangue
que discretamente passeia
pelo corpo inteiro

Abelhas

Publicado em 09/09/2015

Não morremos quando o corpo deixa de funcionar. A morte começa na primeira fatia de coragem perdida. Na juventude, traiçoeira. De repente acordamos cedo para conseguir dinheiro e lutamos para sobreviver, mas não cantamos com a mesma força e nem nos deixamos consumir pelo que realmente importa. Saio de casa séria com meu vestido vermelho e óculos quadrados para selecionar notícias. Sinto falta das gargalhadas despretensiosas, já nem me embriago mais. Tenho ao meu lado uma aquariana com sede de vida que felizmente se embriaga por mim. As atitudes pesam como uma cena de cinema que custa um milhão de dólares para mudar. E então decido que levarei a vida como quem escreve um livro, rabiscando e reescrevendo, rasgando, jogando fora os erros. Mas nesse exercício também recai o peso do perfeccionismo e por fim estou tão obcecada que tudo me parece errado. As palavras estão fora do lugar. Dos modos metafóricos de levar a vida, me agrada mais a sugestão de Rilke: “Assim como as abelhas juntam o mel, reunimos o que há de mais doce em tudo e o construímos. É com o que há de menor, com o que há de insignificante que começamos”. Essa é a única razoabilidade da vida, nossa salvação. Vejo fotos antigas e sinto inveja de mim, tão sorridente com meus cabelos longos. Sei que a alegria inocente de outrora não me pertence mais, mas a ausência de reconhecimento é a prova da transformação. E as coisas que ganhei nesse meio tempo? A consciência de que nunca estarei pronta, ainda bem. Como me disse André Rodrigues, só os despreparados sobrevivem ao amor. É por isso que as crianças ainda detêm as verdadeiras virtudes. Encantam-se com as cores das bolhas de sabão e flutuam no ar como elas. E nós, grandes tolos e tolas, estamos apressados demais nos preparando para o abatedouro. Tão contidos e cerimoniosos, caminhamos lentamente para a morte discreta dos que deixam de viver.  

Para refletir sobre a passagem do tempo: Lista, de Oswaldo Montenegro.

"Que Deus conforte seu coração triste"

Publicado em 09/09/2015

A fala de mamãe ecoou dentro de mim e quando acordei de madrugada já não sentia nada. Foi como se uma bolha rígida e grande tivesse se apoderado do meu coração, impedindo inclusive que ele batesse forte demais, como nos surtos de desespero. Havia agora uma camada protetora, um limite que não me deixava explodir. Aos poucos um ruído agudo tomou conta dos ouvidos e todos os sentidos se tornaram limitados. Aquelas palavras foram como um sedativo natural. Horas depois acordei e tomei um banho, ainda doía, mas agora era suportável.

I’m ready, my Lord

Publicado em 26/03/2017

No colégio interno diziam que para ser salva eu teria que abrir mão de quem eu era. “Cada um tem uma penitência, escolhida por Deus” e o meu desafio nesse mundo era não ser eu. Alguma coisa continuaria presa aqui dentro, como o pássaro azul no peito de Bukowski, e minha função enquanto ser humano seria mantê-la inerte, imóvel. Era esse o preço da eternidade.

O artifício da religião é a culpa.  E a gente só domina a consciência, só se livra do peso quando aprende que há muitos caminhos possíveis e que nem mesmo as crianças acreditam mais em verdades absolutas. Outro dia Mellina, minha afilhada de cinco anos, me perguntou se pontes também eram feitas para gente ou só para carros e fiquei sem resposta. Depois, no carnaval, da janela do hotel em Belo Horizonte eu vi o Viaduto Santa Tereza tomado por foliões e senti vontade de ligar para ela e dizer que sim, as pontes também são feitas para gente (pelo menos no carnaval).

Tenho fé que minha razoabilidade veio depois de ler Vinícius relativizando o infinito. Ele usava amor como argumento. O mesmo amor que me fez reconsiderar a salvação. Em algum momento passei a acreditar que ela se deitaria ao meu lado na cama. Na verdade, minha crença alterna entre isso e entre pensar que nunca estarei a salvo. Mesmo no auge da desilusão - cheguei ao ponto crítico em que a simples possibilidade de aproximação causa desconforto - imagino momentos de trégua com minha respiração noutras costas. Imagino uma cena de filme francês, os olhos atravessando o salão no meio da festa e a certeza de ter encontrado minha pessoa no mundo.

Segue a todo vapor a necessidade de uma liberdade que pressupõe solidão. Não a solidão permanente e impenetrável, mas a solidão como medida, como regra. Há quem diga que o ceticismo é melhor do que a ilusão. Se for assim, estamos bem. Haverá momentos em que somente a ausência de expectativa nos trará paz. É preciso entender que dias, meses ou anos serão perdidos no que diz respeito às relações humanas. Mas mesmo o fracasso deve ser respeitado e compreendido como um elo já que nossa maior semelhança sempre foi a fraqueza, a insignificância. Do amor, não espero menos que a salvação. Por isso canto em consonância com a voz rouca de Cohen, I’m ready my Lord. 

Acesso restrito


[escrito em 01/11/2016]

Hoje acordei me sentindo um corpo. Então me levantei ajoelhada como ensinava o colégio interno há seis anos e roguei para que meu espírito falasse mais alto porque aquele pequeno sussurro não era suficiente para fazer com que eu me sentisse mais do que uma carcaça. Escrever é tatear palmo a palmo o próprio buraco. Existe uma espécie de movimento circular em volta de cada ser humano, as coisas entram e saem o tempo todo. Por isso tem gente correndo no asfalto à uma da tarde. Por isso, nesse exato momento alguém compõe uma canção.

Na casa onde cresci havia uma cisterna de onde os adultos sempre nos diziam para manter distância e era tão inútil porque pulávamos em cima dela inocentemente ignorando os riscos que sequer conhecíamos. E fazíamos isso com a alegria e a aventura de quem quebra um protocolo. É engraçado como quase sempre o medo envelhece conosco, ele cresce, toma forma e passa a ser o único filtro entre o fazer e o não fazer. Naquela época eu pulava na tampa de cimento e agora, agora a impressão é de que estou dando voltas sem nunca pisar em qualquer lugar que possa desabar. Olho para dentro e vejo cones unidos por fitas zebradas e uma placa gigante de acesso restrito.

Devo ter me apegado ao ditado que diz que não podemos nos proteger dos outros e sim da nossa própria dor. Mas insisto, insisto e acordo às cinco voluntariamente e repito até perder a conta que - eu não vim até aqui para me silenciar. Cresci tanto no último ano que não sei onde minha criança foi parar, posso avistá-la brincando do lado de fora de mim. Estou rígida e tenho seis planetas em capricórnio. Minhas mãos sangram e só consigo ignorar. Eu não vim até aqui para fugir. Faz poucos dias, eu dizia, com os pés descalços e um microfone na boca, que nada estará perdido enquanto houver um único suspiro em nome do amor. É preciso não esquecer isso, mesmo quando faltar amor e ar. Só assim estaremos a salvo.

Eu não cheguei aqui para me esconder atrás do silêncio.

coragem

a quem emprestas teu bendito nome?
que movimento sagrado é digno de ti?

quantos passos é necessário sair do lugar
ou quantos dias devo me manter firme
para que me recebas de braços abertos?

[17/02/2019]


os lírios dançam


alecrim, 1/9/2018





https://www.youtube.com/watch?v=3p4MZJsexEs


sem data

recuperado do gravador em 061217 às 2257

cansei de ser água doce
me deixa ser o mar
para que você possa ser o rio
e correr em minha direção

e se misturar ao meu sal
o sal do meu suor
o doce dos meus olhos

o amargo
o amargo de ser eu


POEMA PARA DRUMMOND: CONTORCIONISMO

Publicado em 22/11/2017

amar na primeira estrofe

o barulho na escada
do coração rangendo
nesses tempos
em que provisoriamente
não cantamos o amor

tudo ainda passa num minuto
e o lamento final
é uma pedra correndo muda
na enchente que invade a rua
e refaz o caminho

da saudade da sede itabirana
da coragem dos homens e mulheres
que não se negam a sonhar

pra você
que está em tantos os lugares.
no poema, na bahia, na estante.
no sentimento do mundo,
numa cidade qualquer.

pra você que mora na estátua
de cento e cinquenta quilos,
nas veias,
nas janelas,
entre cafezais e sonhos
como um poema que aconteceu.

nada menos que a eternidade.
Publicado em 09/10/2017

tenho uma tendência crônica a desistir de tudo. às vezes desisto dos dias, sempre depois da metade. o sol de antes do meio dia ainda é forte o suficiente para o surgimento da esperança. a insistência no sofrimento que dá vida sempre me acompanhou. a necessidade do belisco atestando a realidade. gosto de parar quando percebo que chegou. o primeiro fio de pensamento sobre a mais remota possibilidade de desistência. um esqueleto de argumentação, os embriões dos motivos tomando forma e o estopim. vamos jogar nas cartas qual será o estopim. lembro de quando havia finais felizes. todo o texto caminhava para um rumo, de repente, mudava abruptamente de direção para regar a esperança. como quando eu não quero sair, mas desisto de última hora e coloco a roupa mais bonita pra te acompanhar. talvez ainda haja tempo para não desistir dos finais felizes. talvez ainda não seja hora de pensar no fim.

00:45

Publicado em 22/09/2017

tem seu gosto
e tem o cheiro do seu gosto

tem os nossos dias
e a cor dos nossos dias

o humor
a trilha
a receita
a cozinha

quero nos destrinchar mas não consigo
me desmonto pra ver certeza em cada parte
pra ver você em cada parte

nossa escada
nosso edifício

você não faz ideia
da força
da base
que nos une

eu sempre estarei aqui
Publicado em 22 de agosto de 2017

enquanto o mundo cai
eu só penso nas suculentas que você quer colocar no banheiro
eu lavo a louça ouvindo repetidamente estrela estrela que você quer aprender


dia sete

Publicado em 12/07/2017

meu amor,

nunca saberei sua real extensão porque conosco acontece o mesmo que ocorre à história diante dos grandes acontecimentos. é impossível ter noção da importância dos fatos quando  quando se está dentro deles. espero nunca saber seu real tamanho porque você insistirá em ser um grande acontecimento dia após dia e eu insistirei em permanecer dentro de você de todas as formas possíveis. você é o maior acontecimento e para nós isso basta. basta também que eu meça seu tamanho de perto, o formato dos seus dedos, a textura ressecada da tua boca no inverno, os caracóis iluminados do teu cabelo e todas as coisas que seria impossível mensurar a um passo de distância. que seja sempre assim. que deixemos por conta dos outros qualquer análise que exija um grau mínimo de impessoalidade. que sejamos responsáveis apenas (por nós?).

casca

Publicado em 25/06/2017

0. introdução
se alguém disser que ama sua fraqueza estará mentindo. ninguém quer percorrer o universo incerto para além da casca dura que você passou anos construindo. por dentro sangra. por dentro não é tão bonito.

1. a lembrança
posso sentir o atrito. a pele do joelho raspando com força e acidentalmente no cimento do chão do quintal. na infância eram esses os tombos que agora servem de metáforas para outros maiores e mais doloridos não tão literais porém mais letais. passada a dor, havia a urgência e emoção em tirar a casca, matar a ferida. romper o curso natural de cicatrização e correr o risco de encontrar algo desagradável por baixo da crosta. ainda hoje carrego resquícios dessa urgência.

2. a camada
mas aqui entramos em outro ponto, que é na verdade o foco deste devaneio. a casca. a facilidade e a naturalidade com que fazemos isso na infância. coragem.

3. a origem dos tombos
grande parte dos tombos foi em momentos de alegria em que não era possível evitar o auto-atropelamento. pés se embaraçavam na pressa. a rapidez acompanhava a empolgação por qualquer coisa hoje idiota.

4. internato
ainda lembro como se fosse hoje. quando cheguei no colégio interno, fora os adventistas, as pessoas, no geral, eram conhecidas pelos seus erros. cada um foi mandado para lá por um motivo específico, para "consertar" alguma coisa. por causa dos nossos erros nos encontrávamos. estávamos todos no mesmo balaio-humano-errático. ainda estamos.
Publicado em 25/05/2017

Eu nunca soube o que é a dor da morte e continuo sem saber. O grau de tristeza das tragédias depende do quanto não esperamos por ela e vovó nos preparou bem demais para tudo. Anunciou de um jeito doce sua partida e se despediu de um por um. como nos despedimos. Graças à minha memória fraca, não me lembro exatamente do que falamos naquela segunda-feira além do gosto das comidas do hospital e como sua pressão havia se comportado na noite anterior. Quase desperdicei minha despedida. Cheguei a pedir papai que dissesse a ela que por conta do cansaço deixaria a visita para amanhã. Mas naquela tarde o sono não veio e tive medo de tê-la amado pouco, ou de pensar nisso quando ela fosse embora. Não tinha nada nas mãos além de amor e um doce de leite mineiro que comprei no aeroporto de Belo Horizonte. Também lembro de ter hesitado sobre o doce. Como ia dizendo, não sei de que assuntos falamos, mas lembro de caminharmos no corredor do hospital a passos lentos, ela com a mão sobre a minha, essa seria a última vez que eu andaria devagar. Andar correndo é um habito que até hoje só abandonei quando estive ao seu lado. nesse momento a cortina amarela balança com o vento e quando o sol movimenta as sombras dentro do quarto, chego a pensar que vovó está dançando ao meu lado enquanto falo sobre ela, mais uma vez. 

fragmento

Publicado em 24/05/2017

suspeito que o grande desafio do amor
seja evitar que a alegria se concentre em um único ponto

como a pinta nas suas costas
que poderia abrigar tudo que ainda hei de sorrir

mas dessa forma nos afastaríamos
da essência do sentimento

essa dispersão quase bêbada da euforia
que nos faz feliz no ocaso e na aurora
e em todos os instantes nos quais ingenuamente queremos morar

onde a arte não precisa ser uma fuga
onde o mel escorre indiscriminadamente
e mesmo no asfalto vislumbramos o mar
Publicado em 22/04/2017


faz tempo que o amor não passa do primeiro passo
degustação
por isso não posso perder a solidão de vista
não quero esquecer o caminho do lugar para onde acabarei voltando
meu coração não carrega mais o peso das tragédias
e o fim não é mais uma prova de fogo
porque até os desafios perdem o grau de dificuldade
quando se tornam uma constante
quero me sentir segura como o beija-flor suspenso no ar
mesmo sabendo que nenhum outro pássaro é capaz de tamanha estabilidade
o grande segredo está nos redemoinhos invisíveis
ao contrário das outras aves, ele não agita as asas pra cima e pra baixo,mas para a frente e para trás, na horizontal
a isso deram o nome de truque do voo invertido
nesse caso a rapidez não é tudo
são oitenta batidas por segundo
mas no fundo, é só uma questão de jeito
assim como nas aventuras,aberturas, exceções
eu não quero mudar de combustível

estou perdendo o jeito

Publicado em 06/03/2017

é tudo que consigo pensar
quando você dorme ao meu lado
e não tiro sua roupa

observo a vida do vigésimo terceiro andar
e só posso escrever sobre o que vejo
desde que tomei uma distância segura
desde que assumi as rédeas de mim
a literatura se tornou algo distante
estou torcendo um pano seco
quero as palavras mas não quero me molhar

de qualquer forma é um caminho
uma possibilidade
tudo tem seu preço mas nada é tão irreversível
até a surdez do beijo na orelha passa
e a ponte que durante o carnaval
abre mão dos carros e recebe os passos lentos
de quem vai em busca da felicidade

é só o que queremos
e se o amor nos parece um atalho
por que não?


Marcadores