"Que Deus conforte seu coração triste"

Publicado em 09/09/2015

A fala de mamãe ecoou dentro de mim e quando acordei de madrugada já não sentia nada. Foi como se uma bolha rígida e grande tivesse se apoderado do meu coração, impedindo inclusive que ele batesse forte demais, como nos surtos de desespero. Havia agora uma camada protetora, um limite que não me deixava explodir. Aos poucos um ruído agudo tomou conta dos ouvidos e todos os sentidos se tornaram limitados. Aquelas palavras foram como um sedativo natural. Horas depois acordei e tomei um banho, ainda doía, mas agora era suportável.

I’m ready, my Lord

Publicado em 26/03/2017

No colégio interno diziam que para ser salva eu teria que abrir mão de quem eu era. “Cada um tem uma penitência, escolhida por Deus” e o meu desafio nesse mundo era não ser eu. Alguma coisa continuaria presa aqui dentro, como o pássaro azul no peito de Bukowski, e minha função enquanto ser humano seria mantê-la inerte, imóvel. Era esse o preço da eternidade.

O artifício da religião é a culpa.  E a gente só domina a consciência, só se livra do peso quando aprende que há muitos caminhos possíveis e que nem mesmo as crianças acreditam mais em verdades absolutas. Outro dia Mellina, minha afilhada de cinco anos, me perguntou se pontes também eram feitas para gente ou só para carros e fiquei sem resposta. Depois, no carnaval, da janela do hotel em Belo Horizonte eu vi o Viaduto Santa Tereza tomado por foliões e senti vontade de ligar para ela e dizer que sim, as pontes também são feitas para gente (pelo menos no carnaval).

Tenho fé que minha razoabilidade veio depois de ler Vinícius relativizando o infinito. Ele usava amor como argumento. O mesmo amor que me fez reconsiderar a salvação. Em algum momento passei a acreditar que ela se deitaria ao meu lado na cama. Na verdade, minha crença alterna entre isso e entre pensar que nunca estarei a salvo. Mesmo no auge da desilusão - cheguei ao ponto crítico em que a simples possibilidade de aproximação causa desconforto - imagino momentos de trégua com minha respiração noutras costas. Imagino uma cena de filme francês, os olhos atravessando o salão no meio da festa e a certeza de ter encontrado minha pessoa no mundo.

Segue a todo vapor a necessidade de uma liberdade que pressupõe solidão. Não a solidão permanente e impenetrável, mas a solidão como medida, como regra. Há quem diga que o ceticismo é melhor do que a ilusão. Se for assim, estamos bem. Haverá momentos em que somente a ausência de expectativa nos trará paz. É preciso entender que dias, meses ou anos serão perdidos no que diz respeito às relações humanas. Mas mesmo o fracasso deve ser respeitado e compreendido como um elo já que nossa maior semelhança sempre foi a fraqueza, a insignificância. Do amor, não espero menos que a salvação. Por isso canto em consonância com a voz rouca de Cohen, I’m ready my Lord. 

Acesso restrito


[escrito em 01/11/2016]

Hoje acordei me sentindo um corpo. Então me levantei ajoelhada como ensinava o colégio interno há seis anos e roguei para que meu espírito falasse mais alto porque aquele pequeno sussurro não era suficiente para fazer com que eu me sentisse mais do que uma carcaça. Escrever é tatear palmo a palmo o próprio buraco. Existe uma espécie de movimento circular em volta de cada ser humano, as coisas entram e saem o tempo todo. Por isso tem gente correndo no asfalto à uma da tarde. Por isso, nesse exato momento alguém compõe uma canção.

Na casa onde cresci havia uma cisterna de onde os adultos sempre nos diziam para manter distância e era tão inútil porque pulávamos em cima dela inocentemente ignorando os riscos que sequer conhecíamos. E fazíamos isso com a alegria e a aventura de quem quebra um protocolo. É engraçado como quase sempre o medo envelhece conosco, ele cresce, toma forma e passa a ser o único filtro entre o fazer e o não fazer. Naquela época eu pulava na tampa de cimento e agora, agora a impressão é de que estou dando voltas sem nunca pisar em qualquer lugar que possa desabar. Olho para dentro e vejo cones unidos por fitas zebradas e uma placa gigante de acesso restrito.

Devo ter me apegado ao ditado que diz que não podemos nos proteger dos outros e sim da nossa própria dor. Mas insisto, insisto e acordo às cinco voluntariamente e repito até perder a conta que - eu não vim até aqui para me silenciar. Cresci tanto no último ano que não sei onde minha criança foi parar, posso avistá-la brincando do lado de fora de mim. Estou rígida e tenho seis planetas em capricórnio. Minhas mãos sangram e só consigo ignorar. Eu não vim até aqui para fugir. Faz poucos dias, eu dizia, com os pés descalços e um microfone na boca, que nada estará perdido enquanto houver um único suspiro em nome do amor. É preciso não esquecer isso, mesmo quando faltar amor e ar. Só assim estaremos a salvo.

Eu não cheguei aqui para me esconder atrás do silêncio.

coragem

a quem emprestas teu bendito nome?
que movimento sagrado é digno de ti?

quantos passos é necessário sair do lugar
ou quantos dias devo me manter firme
para que me recebas de braços abertos?

[17/02/2019]


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