A fala de mamãe ecoou dentro de
mim e quando acordei de madrugada já não sentia nada. Foi como se uma bolha
rígida e grande tivesse se apoderado do meu coração, impedindo inclusive que
ele batesse forte demais, como nos surtos de desespero. Havia agora uma camada
protetora, um limite que não me deixava explodir. Aos poucos um ruído agudo
tomou conta dos ouvidos e todos os sentidos se tornaram limitados. Aquelas
palavras foram como um sedativo natural. Horas depois acordei e tomei um banho,
ainda doía, mas agora era suportável.
I’m ready, my Lord
Publicado em 26/03/2017
No colégio interno diziam que para ser salva eu teria que
abrir mão de quem eu era. “Cada um tem uma penitência, escolhida por Deus” e o
meu desafio nesse mundo era não ser eu. Alguma coisa continuaria presa aqui
dentro, como o pássaro azul no peito de Bukowski, e minha função enquanto ser
humano seria mantê-la inerte, imóvel. Era esse o preço da eternidade.
O artifício da religião é a culpa. E a gente só domina a consciência, só se livra
do peso quando aprende que há muitos caminhos possíveis e que nem mesmo as
crianças acreditam mais em verdades absolutas. Outro dia Mellina, minha
afilhada de cinco anos, me perguntou se pontes também eram feitas para gente ou
só para carros e fiquei sem resposta. Depois, no carnaval, da janela do hotel
em Belo Horizonte eu vi o Viaduto Santa Tereza tomado por foliões e senti
vontade de ligar para ela e dizer que sim, as pontes também são feitas para
gente (pelo menos no carnaval).
Tenho fé que minha razoabilidade veio depois de ler Vinícius
relativizando o infinito. Ele usava amor como argumento. O mesmo amor que me
fez reconsiderar a salvação. Em algum momento passei a acreditar que ela se
deitaria ao meu lado na cama. Na verdade, minha crença alterna entre isso e
entre pensar que nunca estarei a salvo. Mesmo no auge da desilusão - cheguei ao
ponto crítico em que a simples possibilidade de aproximação causa desconforto -
imagino momentos de trégua com minha respiração noutras costas. Imagino uma
cena de filme francês, os olhos atravessando o salão no meio da festa e a
certeza de ter encontrado minha pessoa no mundo.
Segue a todo vapor a necessidade de uma liberdade que
pressupõe solidão. Não a solidão permanente e impenetrável, mas a solidão como
medida, como regra. Há quem diga que o ceticismo é melhor do que a ilusão. Se
for assim, estamos bem. Haverá momentos em que somente a ausência de expectativa
nos trará paz. É preciso entender que dias, meses ou anos serão perdidos no que
diz respeito às relações humanas. Mas mesmo o fracasso deve ser respeitado e
compreendido como um elo já que nossa maior semelhança sempre foi a fraqueza, a
insignificância. Do amor, não espero menos que a salvação. Por isso canto em
consonância com a voz rouca de Cohen, I’m ready my Lord.
Acesso restrito
[escrito em 01/11/2016]
Hoje acordei me sentindo um corpo. Então me levantei
ajoelhada como ensinava o colégio interno há seis anos e roguei para que meu
espírito falasse mais alto porque aquele pequeno sussurro não era suficiente
para fazer com que eu me sentisse mais do que uma carcaça. Escrever é tatear
palmo a palmo o próprio buraco. Existe uma espécie de movimento circular em
volta de cada ser humano, as coisas entram e saem o tempo todo. Por isso tem
gente correndo no asfalto à uma da tarde. Por isso, nesse exato momento alguém
compõe uma canção.
Na casa onde cresci havia uma cisterna de onde os adultos
sempre nos diziam para manter distância e era tão inútil porque pulávamos em
cima dela inocentemente ignorando os riscos que sequer conhecíamos. E fazíamos
isso com a alegria e a aventura de quem quebra um protocolo. É engraçado como
quase sempre o medo envelhece conosco, ele cresce, toma forma e passa a ser o
único filtro entre o fazer e o não fazer. Naquela época eu pulava na tampa de
cimento e agora, agora a impressão é de que estou dando voltas sem nunca pisar
em qualquer lugar que possa desabar. Olho para dentro e vejo cones unidos por
fitas zebradas e uma placa gigante de acesso restrito.
Devo ter me apegado ao ditado que diz que não podemos nos
proteger dos outros e sim da nossa própria dor. Mas insisto, insisto e acordo
às cinco voluntariamente e repito até perder a conta que - eu não vim até aqui
para me silenciar. Cresci tanto no último ano que não sei onde minha criança
foi parar, posso avistá-la brincando do lado de fora de mim. Estou rígida e
tenho seis planetas em capricórnio. Minhas mãos sangram e só consigo ignorar.
Eu não vim até aqui para fugir. Faz poucos dias, eu dizia, com os pés descalços
e um microfone na boca, que nada estará perdido enquanto houver um único
suspiro em nome do amor. É preciso não esquecer isso, mesmo quando faltar amor
e ar. Só assim estaremos a salvo.
Eu não cheguei aqui para me esconder atrás do silêncio.
coragem
a quem emprestas teu bendito nome?
que movimento sagrado é digno de ti?
quantos passos é necessário sair do lugar
ou quantos dias devo me manter firme
para que me recebas de braços abertos?
[17/02/2019]
que movimento sagrado é digno de ti?
quantos passos é necessário sair do lugar
ou quantos dias devo me manter firme
para que me recebas de braços abertos?
[17/02/2019]
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