o último do ano

Publicado em 31/12/2015

o amor está bem distante do aquário que abriga os peixes coloridos sobre a mesa. nem mesmo os pássaros escandalosos nas gaiolas podem alcançá-lo com suas pequenas asas. ao contrário do que você dizia, seus ombros pontiagudos poderiam abrigar meu sono aqui ou em qualquer lugar. se até brasília pode ser aconchegante, quem dirá seus ombros. com a tua coragem poderíamos mudar o mundo. mas alguma coisa se perdeu entre pedras das rodovias que nos separam e isso deve ser uma grande tragédia. "devemos louvar a catástrofe, seja ela qual for, que destruiu a ilusão e colocou a verdade em seu lugar?" - está no livro rosa de virgínia woolf que você me deu. desastres são importantes para aproximar as pessoas, dizem. por aqui o mar está agitado e o sol nunca esteve tão quente. prefiro assim, a natureza é mais sincera quando mostra sua força. foi no oceano que você disse que morava o amor? isso seria bom porque setenta e um por cento do planeta é feito de água e olhando assim é possível imaginar a terra como um imenso coração em pleno funcionamento rotacionando e translacionando vida pelos mares como o sangue que nos chega pela aorta. fecho os olhos e suas pupilas crescem violentamente no escuro. esse é o acontecimento mais verde e sincero de dois mil e quinze.

ainda é essa a cor da esperança?
Publicado em 10/11/2015

se tivesse outros braços além desses
com todos eles te abraçaria

Nossos corpos celestes

Publicado em 19/10/2015

O efeito estufa chegou em Goiânia.
Na flor da idade o sol nos alcançou.
Estamos derretendo
sobre a grande estrela vermelha
que nos aquece como um jovem
fazendo força no auge da vida.
E enquanto reclamamos e comentamos
sobre o quanto o sol está bem
e mau conosco,
eu apenas me pergunto
o amor tem vida própria?

O amor é um linha reta

e isso não responde nada
mas somos nós
que o transformamos em labirinto,
como um homem que se afasta de Deus
em prol da religião,
como quem espanta os pássaros.

Serei engolida pela minha sede.

Tanto faz,
finjo que tenho calma.
E acho que realmente tenho.
Tento olhar conscientemente
para a urgência
e manuseá-la.
Sinto que estou costurando
calmamente
uma peça de crochê.

Estou perdendo a ingenuidade
numa velocidade sobre-humana.

Olho dentro dos meus olhos
num passado próximo
e havia tanto medo.
Agora não.
Ontem eu era
uma versão menor de mim.

A beleza é um estado de espírito.
E a maldade ainda me é inconcebível.
Uma pessoa despida e frágil,
como somos em essência
não pode ser má.

Ainda acredito muito nos outros
embora me assuste
essa ausência de empatia.

Papai é um homem muito sensível,
percebi isso
quando me falou das fases da lua.
Disse que gosta do fim do mês
quando ela está cheia
e ilumina as águas dos rios.

No fundo, somos todos
sensíveis demais.
E arte nos alcançaria,
não perdoaria ninguém,
se não tentássemos
ser tão fortes
o tempo inteiro.

Quando as pessoas se souberem
e se fizerem humanas
e se reconhecerem,
o mundo finalmente
será um lugar acolhedor.
E isso é tudo que sei
sobre a crise migratória na Europa.

Meu coração está coberto
por uma névoa vermelha,
suspeito que seja amor.
Publicado em 12/10/2015

perco o controle
e peço perdão
até perder a conta
me desculpa por ser eu
por ainda te escrever
depois de jurar que não
por quebrar todas
as promessas possíveis
de me manter longe
por ainda te sonhar nua.

03092015

Publicado em 07/09/2015

Mesmo se eu te previsse, você ainda seria uma surpresa. Ainda que eu te sentisse chegando como as ondas que se alongam com a proximidade da lua, sua presença me surpreenderia assustadoramente. Se eu te inventasse – e inventei – em pensamento, correlata aos meus sonhos, com esse mesmo cheiro, essa mesma pele e esse mel nos olhos, você continuaria sendo a melhor coisa que me aconteceu nos últimos tempos. Meu corpo gemendo silenciosamente por não saber mais o que é permitido. A vontade escancarada que me tomou de mim e me fez tão sua. Falo do silêncio que só existe pra te fazer ficar e da palavra, insistente palavra, ingênua palavra que teima em transbordar mesmo sabendo que o principal sempre há de escapar por uma pequena fresta, alguma brecha onde só o coração alcança. O minuto de silêncio, o escuro, o inodoro, o insípido. O amor é um bicho solto no meio do nada. 

00:34, day one.

Publicado em 15/08/2015

há uma cerca de arame farpado
ao redor do meu corpo
e não importa para onde eu me mova
alguma parte de mim
sempre estará sangrando

quero ser uma pessoa boa

Publicado em 05/08/2015

quero ser a mulher que vai te marcar pelo resto da vida

você é o café preto que me tira da cama todos os dias

quando pronuncia as primeiras sílabas
e me sinto novamente parte do mundo
eu me arrasto para o chuveiro
e lavo os cabelos mais uma vez
tudo porque você existe
eu faço tanta coisa porque você existe
a consciência da sua existência
é minha dose diária de cafeína
eu acelero o carro para amenizar o atraso
mas não te abandono no caminho
nem quando chego
nem nas primeiras notícias
acho que não sei te abandonar
e você me acompanha
como a garrafa de água
que insisto em levar para onde vou
e porque você existe os dias passam
os dias voam

deito na cama e te espero estar pronta
você é o chá de camomila
que me adormece todas as noites
a consciência da sua existência
é minha dose diária de tranquilidade
porque você existe
eu sinto o peito afagado
por você
e só por você
meu coração pulsa forte
Publicado em 15/05/2015

da euforia súbita que só se faz presente depois da consciência do fim
da alegria irremediável que só aparece por se ter estado tão perto da morte
Publicado em 07/05/2015

os travesseiros ocupam
seu lugar na cama

lado esquerdo

como um coração
batendo fora de mim

estou amando
uma mulher de ferro
que belo castigo

nunca mais

Publicado em 16/04/2015

reclamarei da calma. pelo contrário, desejo encontrá-la a cada manhã, nos seus olhos ainda fechados dentro de algum sonho que me inclua ou não. e quando você entrar no carro com seu batom escuro, quero que cada pedaço do meu rosto fique da cor da sua boca. e que eu fique tão suja que seja impossível sair em público, pois será essa minha justificativa pra te levar pro quarto mais próximo e te amar, te amar e te amar o quanto não amei nesses quatro últimos dias.

o desespero

Publicado em 02/05/2015

é uma sanfona

vai e volta
abre e fecha

sempre ecoando
o som agudo

que vibra
em cada livro

na estante
na cama

em tudo
que lembra
você
Publicado em 25/04/2015

acho que já posso voltar a sorrir para ele. o homem cuja letra quase confundi com a minha na dedicatória em um exemplar de sua trágica epopéia. até hoje não consegui ler um poema completo, mas guardo com carinho na estante. o livro, e ele. doce justiceiro. nossas sedes se assemelham. é claro que não serei sua amante, sequer aceitarei qualquer dos seus convites. mas hoje me presenteou de novo. um livro de outro autor, sem dedicatória, sem letra parecida, sem vínculo, sem nada. o conteúdo intelectual me agrada. estou no segundo capítulo. o sorriso é pelo compartilhamento da leitura. não falo de leitura compartilhada, céus, como têm me esgotado as últimas leituras em grupo na sala de aula. ler é um exercício estritamente solitário. também não me refiro aos poemas declamados que, por sinal, me salvam diariamente. compartilhamento literário é qualquer coisa, menos o que fazemos em sala de aula. é o desejo de que outra pessoa tenha acesso àquelas palavras e sinta igualmente. dividir uma leitura é dividir sentimentos. por isso, pela beleza da intenção, um sorriso para o doce homem que teima em se aproximar.

no papel as tristezas são mais tristes

Publicado em 13/04/2015

nosso lugar preferido nem existe mais e o nosso precioso dia é só mais um dia perdido no meio de um reflexo do sol lunático de verão. deveria manter em segredo, não fosse seu fantasma a me visitar noite passada, tão real. eu te pedindo pra ser livre, pra ter coragem. antes de acordar assustada e perceber que talvez eu morra sem que nada mais faça sentido. os textos semanais, falar sobre a beleza da vida, a compaixão pelo outro. tenho compaixão de mim, de você. de todos os covardes. daqueles que como nós, são conscientes da própria covardia. nossa zona de conforto é uma grande cela escura e desconfortável, como aquela em que vivia ezequiel. os ratos andam sobre nós, vivemos entre fezes e ainda assim pensamos que aqui dentro é mais seguro. agora sei sobre as estações do ano. sei também das áreas de instabilidade que causam chuva. sim, sou a nova garota do tempo. de uma forma ou de outra sempre achamos alguma distração. o trabalho é como a fresta da janela anunciando, de dentro da prisão, a cronologia do tempo que passa. claro. escuro. o despertador já tocou, é hora de levantar. 

poema concretista ou rima no meio do nada

Publicado em 21/03/2015

tão natural quanto
dormir ao seu lado e sonhar com você
e o coração que só fica tranquilo quando te vê
me sentir viva na pulsação da veia do seu braço que me abraça
se seu corpo no meu corpo e não mais frio na madrugada,
que seja amor,
que assim se faça

2015, fevereiro.

Publicado em 02/2015

Escrevo à luz de velas depois de uma forte chuva que interrompeu o fornecimento de energia. Tudo está silenciosamente calmo. Não preciso de muito. A arte não precisa. A fraca luz amarelada me é suficiente. O cenário naturalmente poéticó é um presente da natureza. Ela sabe, não sou de inventar histórias. Tenho a vida inteira para me fazer artista. Mas agora, nesse instante, meu prazo não excede o tempo de uma vela.

O papel em branco. A tela em branco. O silêncio antes da música. As luzes acesas no cinema. O preto que antecede as cores da fotografia. São pequenas frestas por onde escapam pedaços de gente. Partes bonitas e sombrias. O que mais causa vergonha e também o que se quer mostrar. De alguma forma, só os pedaços mais verdadeiros e  humanos conseguem escapar. A eles damos o nome de obras de arte.
Imagine o artista como uma nuvem pesada se dissolvendo em pingos, alguns suaves e outros muito violentos. À medida que vai se desfazendo e se transformando em sua obra, se sente leve, livre. Mas a chuva é passageira, logo o céu estará azul de novo, pronto para receber outras nuvens carregadas. E até as mesmas nuvens que se enchem novamente e se dissolvem e se enchem e se dissolvem. A liberdade dura o tempo de uma tempestade. A liberdade dura o tempo de um poema. 

A grandissíssima amante da solidão é quem promove um encontro com a assunção e a fuga em um só lugar. Então, o espanto. O olhar-se no espelho e não se reconhecer.  A arte é um rastro permanente desses encontros. Quando se pode ficar em silêncio por mais de dois minutos e não é necessário sorrir, falar asneiras, ou concordar com qualquer besteira que sai da boca alheia. O artista se torna cada vez mais refém desses momentos. Egoísta, desprendido e solitário para alcançar o máximo de si.

O reconhecimento ao se deparar com o o próprio vômito. Embora não seja algo agradável de se imaginar. É exatamente assim. Desconfortável e aliviante. Uma agressão libertadora. A vela está acabando. Chegarei ao final e terei que reler para corrigir os erros e então me acharei tão tola e ingênua. Indigna dos seus olhos que me acompanham, do minuto que roubo. Mas nã há opção, se é aqui que me reconheço. Se essas palavras me soam mais familiar do que a pessoa que vejo no espelho.


A arte é linda e cruel. Simples como uma vela que queima e ilumina.

não

Publicado em 16/04/2015

nunca mais escrevi pensando em você

mas passo grande parte do tempo
pensando em te escrever
talvez isso valha

e tem mais
ainda refaço seus passos
se é que importa

os pássaros
as estrelas
os caminhos
às vezes me lembram você

quando canto sozinha

e se alguém me pergunta
sobre o amor

saudade

Publicado em 22/01/2015

é um pedaço
de qualquer coisa
que mora na gente
e vive louco
pra voltar pra casa

quero não querer

Publicado em 13/01/2015

suprir todas as suas faltas
não tentar tapar os buracos que a vida deixou
quero desejar apenas segurar sua mão

e isso me faz fadada ao fracasso

porque a verdadeiro amante
não se contenta em ser amante
tem que ser mãe, filha, irmã

tem que ser tudo
Publicado em 07/01/2015

de que valem
os surtos de coragem
se depois a solidão me atrai mais?

A mulher mais corajosa do mundo

Publicado em 2015

Acorda rigorosamente antes das sete e vai para o quintal pentear os cabelos longos e brancos, tão claros quanto o amanhecer. Faz o coque que durará até a hora de dormir e providencia o café doce e forte. Costumava murmurar sobre a demora da morte mas abandonou a mania com a chegada da bisneta Mellina Rosa, dos cabelos loiros e encaracolados, cujo abraço é tão forte que quase chega a derrubar. A menina aprendeu, não se sabe como, a chamá-la de vovó querida e esse afeto tão puro e espontâneo aparentemente adiou sua vontade de ir embora.

Mellina não foi a primeira nem a última, antes dela nasceram quatro e depois dela mais dois. Sua importância vem da mãe, criada a vida inteira pela “vovó Tereza”. Quando era bem pequena, Nayane foi passar uma temporada na casa da avó porque a mãe, Claudina, não tinha condições de criar os três filhos. Depois de um ano a temporada deveria chegar ao fim, mas a netinha ficou doente longe da avó e essa quase morreu de paixão. O passeio durou a vida inteira, até o casamento de Nayane, de onde saiu o fruto, a bisneta tão querida que deu vida à vida da bisavó.

Depois de passar o café, compra o pão no mercado da esquina. Embora o corpo esteja fraco e a pernas trêmulas anunciem o auge dos 89 anos, nem pensa em dispensar as caminhadas diárias. Chega a ir ao mercado três vezes no mesmo dia. Os pães sempre são contados de modo que sobrem para amanhã, não porque alguém na casa goste de pão amanhecido, mas é que as visitas esperadas nunca chegam, não na mesma hora. O importante, ela pensa, é estar sempre preparada para receber quem quer que seja.

Há quem diga que é uma mulher de sorte com tantas companhias e a campainha que toca o dia inteiro movimentando a casa e o coração. Além da neta, o filho mais velho também foi morar com ela logo que se separou da esposa. Fora o fato de livrá-la da solidão, Ruremar não deu muitas alegrias. Taxista e alcóolatra, recentemente abandonou o ofício depois de ser pego dirigindo embriagado. Por sorte, ou pelas orações da mãe, nunca sofreu nenhum acidente grave e está largando o vício. A embriaguez se tornou rara e no meio de semana se ocupa de algumas atividades como varrer o quintal, colocar o lixo para fora e assistir televisão. Mas a gratidão e necessidade de cuidado que a mãe sente por ele vêm desde tempos remotos, quando o marido morreu e ele a ajudou a criar os cinco irmãos.

A história de Terezinha é uma história de amor que poderia ser facilmente confundida com com romances de filmes e livros que circulam por aí. Quem a vê às oito da manhã tomando leite com café de forma tão calma, nem imagina sua trajetória. Tudo começou por volta de 1947. De família tradicional em Buriti Alegre, no interior de Goiás, costumava andar a cavalo com os irmãos na redondeza da fazenda onde moravam. Em um desses passeios conheceu o amor de sua vida, Ronan. Ele estava encostado na porteira da fazenda em que trabalhava. Rapaz bonito, alto, chamou sua atenção. Naquele dia não conversaram muito, mas pouco tempo depois descobriria que Ronan não tinha pai nem mãe, e muito menos dinheiro. Mas era trabalhador e para ela isso bastava.

Começaram a namorar e, como era de se esperar, a família não apoiava o romance, arrumaram inclusive um noivo de origem rica para que ela pudesse se casar o mais breve possível. Mas não adiantou, Terezinha amava Ronan e já havia decidido que não se casaria sem amor. Dito e feito – fugiram na calada da noite sem deixar nenhum sinal. Foram andando até Buriti Alegre e de lá pegaram um carro para a cidade vizinha, Morrinhos, onde se casaram no outro dia. Depois, foram de caminhão até Ceres, onde alguns familiares de Ronan lhes dariam abrigo.

Logo ela mandou uma carta para a família junto com a certidão de casamento e obviamente não obteve resposta. Quando perceberam que ela havia fugido, a preocupação foi outra. “Era eu que guardava o dinheiro do meu pai e na hora que eles deram falta de mim, dizem que ele foi direto pra procurar, ver se eu tinha carregado o dinheiro, e eu não tinha levado nada. Eu procurava dar um jeito de juntar meu dinheiro”, conta. Na ocasião, um irmão chegou a dizer que ela deveria ter levado pelo menos uns dez contos, que era pra não passar fome por lá.

Não pôde voltar em casa por muito tempo, sob risco do pai e os irmãos matarem o marido. A mãe não era tão rígida, mas também tinha medo, por isso achava melhor que a filha continuasse longe. “Depois de muito tempo, quando eu voltei lá meu pai já tinha falecido. Não despedi do pai”, fala em tom de tristeza e arrependimento. Não se arrepende de ter fugido por amor. Se pudesse, faria tudo outra vez, do mesmo jeitinho. No entanto, isso não diminui a tristeza que sente por nunca ter se despedido direito do pai.

Só depois que ele faleceu, ela voltou na fazenda para visitar a mãe e os cinco irmãos – quatro homens e uma mulher. Eles não guardavam mais rancor, mesmo a pior das mágoas ameniza com o tempo. Terezinha era vista como uma rebelde pela família que, apesar de tudo, não deixou de amá-la. Hoje, ela é a única que ainda permanece viva. Vai fazer dois anos que o último irmão, o mais novo, morreu. A morte é sua maior tristeza, tantas pessoas que perdeu ao longo da vida. Lamenta, mas continua firme. A liberdade de ter feito as próprias escolhas lhe deu forças para seguir em paz por tantos anos.

Depois do café, é hora das obrigações. Primeiro, rega as plantas com cuidado, a cebolinha está quase grande e os ramos de chá são o melhor remédio quando alguém adoece. Em seguida, é hora de lavar as roupas, sempre há alguma peça leve para lavar na mão. As brancas, coloca dentro de uma sacola com água e sabão e põe no sol para clarear. Lavar roupas é quase um ritual diário, a tarefa doméstica preferida e que já serviu até como fonte de renda. Houve um tempo em que lavava roupa na vizinha em troca de leite para os filhos e pedaços de sabão, logo após a morte do marido.

A essência de Ronan era nômade, ele não aguentava ficar muito tempo no mesmo lugar. Trabalhava em fazendas, na fabricação de tijolos e sempre dava um jeito de ser transferido para outra cidade onde ganharia mais dinheiro ou supostamente teria mais oportunidades. A intenção era sempre arrastar consigo a esposa e os filhos, mas ela não ia assim tão fácil: “Eu posso ir com você, mas só se for onde os meninos possam estudar”.

Quando compraram uma casa na cidade de Porangatu com o dinheiro de uma herança que Terezinha recebeu, ele não cessou enquanto não venderam. Houve uma vez, ela conta, que um homem queria dar um carro em troca da casa: “e ele falou, não mas ele já passou os documentos pra mim. Aí eu falei mas eu não assino porque a casa é no meu nome também”. Depois, se mudaram e tiveram que vender a casa, segundo ela, por “mixaria”. Receberam errado, venderam alguns móveis e outros deram para os vizinhos.

Primeiro foram para Conceição do Araguaia, no Pará. Ficaram lá alguns dias, alugaram uma casa perto de uma olaria onde um dos filhos chegou a trabalhar. Mas não ficaram muito tempo, logo Ronan levou a família para Redenção do Pará, sem saber que lá seria enterrado. Também seria por lá que a segunda filha, Vera Lúcia, firmaria as raízes que duram até hoje. Vera sempre teve um temperamento calmo, como das enfermeiras que não se deixam contaminar pelo desespero do paciente. Mesmo sem formação, acabou se infiltrando na área da saúde. Começou trabalhando na lojinha de um casal que, entre tantas outras mercadorias, também vendia remédios. Depois, um rapaz que tinha uma farmácia perto do hospital a chamou para trabalhar. E por fim, ela foi trabalhar no hospital.

Em Redenção, Vera conheceu seu marido, Zé Mario, do qual é divorciada hoje. Tiveram quatro filhos e ela adotou como suas outras duas filhas dele com outra mulher. Hoje, ela vive dividida. Passa um tempo em Redenção, com a família que criou, e um tempo em Goiânia, cuidando da mãe. Vera deve chegar mês que vem, mas enquanto não está aqui, é Terezinha quem se encarrega do almoço. Cozinhar não é seu ofício preferido, mas faz de bom grado o arroz, o feijão e a carne, sagrados. Às vezes frita uma banana ou corta um tomate para variar um pouco. Costuma chamar todos em casa para almoçar, e quando dizem que não, ela considera uma ofensa.

Mais do que respeito, os filhos têm grande admiração pela mãe. Apesar de ter ficado viúva tão cedo, nunca teve outro homem e talvez por isso tenha a imagem santificada por todos ao redor. Mas sem esforço, naturalmente, ela faz por onde. Sua postura condiz com o altar no qual a colocam. Possui a serenidade e calma de uma capricorniana e apesar de não compreender muitas coisas dos tempos atuais, não se acha no direito de julgar. Além de tudo, conserva até hoje o estilo clássico dos anos 50, usando apenas vestidos, sempre com as anáguas por baixo.

Quando Renan morreu, fazia quatro anos que moravam em Redenção. “Lá ele trabalhava em uma fazenda e o povo gostava muito dele. Era um sábado quando ele chegou em casa e na hora de deitar reclamou de dores no corpo. Aí eu falei, então amanhã você não vai trabalhar, vai consultar primeiro, tomar os remédios pra depois ir”, conta. No outro dia cedo ele foi ao hospital onde a filha trabalhava, onde o internaram, ainda com muitas dores.

“Mas lá não descobriram o que era, ele continuou passando mal e eu falei que se ele não melhorasse eu ia levar ele pra Conceição. Ele tinha um compadre que era conhecido e gostava muito da gente, que também era de Porangatu e até morou na nossa casa um tempo. E aí eu arrumei pra ele internar o Ronan em Conceição e fiquei cuidando da casa e dos meninos, três ainda eram pequenos. Mas depois eu deixei a Vera por conta, fiz tudo que tinha que fazer em casa e fui ficar com ele no hospital. Ele fez os exames e eu falei que se curasse eu deixaria ele lá, se não, ia trazer pra Goiânia”, relembra.

Em Conceição não havia laboratório próprio para fazer os exames mais detalhados, e a alternativa foi levá-lo para Goiânia. Foram num avião da fábrica que Ronan trabalhava, levados pelo gerente da fábrica. A internação seguiu a chegada e no outro dia, quando fizeram os exames, o resultado: câncer de fígado. Mesmo assim, ele não quis ficar para se tratar: “Ele quis ir embora de todo jeito por causa dos meninos que tinham ficado lá. Quis voltar e nós levamos um monte de remédio. Aí nós chegamos lá num domingo e ele morreu no sábado, durou uma semana só”.

Apesar da tristeza e da viuvez precoce, ela afirma que “foi melhor do que ficar sofrendo”. Ronan morreu aos 44 anos, pouco mais de um mês depois de sentir as dores naquele sábado. Depois de seu falecimento, a família ainda morou dois anos em Redenção do Pará. Ruremar, o filho mais velho, trabalhava dia e noite para ajudar a mãe a criar os irmãos e buscava a lenha para alimentar o fogão à lenha e a família. Ao fim dos dois anos, mudaram-se para Goiânia, onde Terezinha tinha família e onde moram até hoje. Ficou um tempo com um irmão, depois pagaram aluguel, ela costurava e lavava roupas para ganhar dinheiro. “Não era fácil”, ressalta. Os filhos também trabalhavam para ajudar, os mais velhos assumiam a responsabilidade pelos mais novos e no fim, mesmo em meio às dificuldades, nenhum deixou de estudar.

Ruremar foi o que menos estudou, devido à grande responsabilidade que assumiu com a morte do pai. Vera ficou por muito tempo na área da saúde. O terceiro filho, Paulo Silas, que tem seu nome graças à amizade entre os discípulos, virou contador. Ronildo foi farmacêutico mas abandonou o ofício antes da hora por insanidade mental. Rubens foi policial, guarda de trânsito, sempre sorridente e cheio de carisma, daqueles que conquistam todos ao redor. Parou de atuar depois de sofrer um acidente de moto e ser aposentado precocemente. Cláudia, a mais nova, apesar de ter recebido estudo diferenciado dos outros, em escola particular e adventista, escolheu se casar cedo e não deu muita sorte. Recentemente separou-se do marido para aparentemente viver o verdadeiro amor.

Depois do almoço, Terezinha cochila e quando acorda vai para o quintal ler a bíblia na cadeira branca do jardim. Há doze anos está na Igreja Universal, atraída por um programa de televisão. No início, ia às terças, na sessão do descarrego, até preferir algo mais calmo. Hoje frequenta a igreja aos domingos, todos, sem cessar. Sempre na unidade central, a catedral. Filhos e netos se alternam na missão de levá-la e buscá-la toda semana. Outro dia voltou de taxi e não acertava o caminho de casa, diz que não sabe o que aconteceu, simplesmente “deu branco”. O fato serviu de alerta para que não a deixem voltar sozinha mais.

Acredita que o filho largou o alcoolismo graças às suas orações. Como a casa inteira mata a sede no seu filtro de barro, costuma ungir a água e jogar dentro para que a família seja abençoada. No último domingo, o pastor ofereceu um papel para que os fieis listassem seus medos e os eliminassem por meio de uma campanha de oração. Terezinha rejeitou, sob o pretexto de “não tenho medo de nada”. De fato, 90 anos deve ser tempo suficiente para superar os medos. Ou para vivê-los, como ela viveu tantas mortes e viu tanta gente que amava ir embora.

Às 18h30 em ponto, fala sobre a beleza do sino que toca na igreja vizinha. Em seguida, espera o filho, Paulo, e a nora, Jaqueline, chegarem para conversarem no quintal. Com quase 30 anos de união, Terezinha mora com eles desde que se casaram. Quando foi propor à esposa que a levassem junto, Paulo disse: “se você me pedir para escolher entre você ou minha mãe, eu vou escolher você, mas tenha certeza de que nunca serei plenamente feliz”. Ela aceitou e desde então moraram em duas casas, as duas com um barracão no fundo para abrigar Terezinha, que faz o possível para nunca interferir na vida do casal. Se alguém contesta, Jaqueline logo rebate o estereótipo de sogra dizendo que a dela é diferente. E é.

Quando a lua surge no céu, mostra para mim, sua neta, a Estrela Dalva. Dizem que não se trata de uma estrela e sim de um planeta, Vênus - mesmo nome da deusa romana do amor. Todos os dias, dessa ou de outra maneira, ela aponta para o amor e me mostra o quanto brilha e clareia tudo ao redor. Minha vó é uma espécie de estrela, uma espécie de luz que carrega poesia em cada ruga. Sinto que herdei dela mais que o signo do zodíaco e uma parcela de calma, mas ainda não achei em mim a coragem que a fez ser o que é. Minha avó é a pessoa mais corajosa do mundo. E essa é uma história sobre o amor.




Marcadores