a eternidade é uma sucessão

Publicado em 28/12/2013

estou caindo da cama, mas me agarro firme com a coragem e a fé que me restam. forço o lençol com as unhas, inclino o corpo para cima do colchão e imploro, quase em forma de prece, para que ela não me deixe cair, para que segure minha mão e me abrace e me puxe para perto de si. mas ela dorme profundamente e minha prece silenciosa não a alcança. apenas quando o sol nasce, ela desperta de seus sonhos distantes e me beija com calma e doçura. enxugo o suor, disfarço o cansaço, como se estar ali não exigisse esforço algum. assumo o papel de duas forças distintas. metade quer uma paisagem ímpar, um ângulo único, o per ten ci men to. o resto se contenta em apreciar e sentir toda beleza que se revela aos olhos como uma dádiva. aceito. aceito sorrindo, aceito feliz, aceito dançando pela sala. dia após dia decido continuar por saber que todas as coisas realmente grandes são formadas por uma infinidade de pequenas, minúsculas, imperceptíveis coisas.

"Eternidade não era a quantidade infinitamente grande que se desgastava, mas a eternidade era a sucessão. Então Joana compreendia subitamente que na sucessão encontrava-se o máximo de beleza, que o movimento explica a forma e na sucessão também se encontrava a dor porque o corpo era mais lento que o movimento de continuidade ininterrupta." - Clarice Lispector em Perto do Coração Selvagem

" Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor, apenas respeitadas como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos." Oswaldo Montenegro

Publicado em 22/12/2013

Deus, por que é que as coisas continuam acontecendo dentro de mim? Enquanto o mundo lá fora dorme e as pessoas se movimentam inertes a si mesmas, sem reação, o coração como uma máquina, eu ando na chuva com o sapato dentro da mochila e penso a cada passo em coisas que não deveria pensar, penso em quem nunca tocarei novamente. Penso com ternura, quero que a ternura tome conta de mim e quero mostrar o quanto é bonito. Preciso compartilhar com urgência a beleza das coisas que sinto e vejo, por isso chego assim como quem bate na porta do desconhecido totalmente nu e recebe como única reação a porta batendo forte e se fechando de novo, após uma pequena abertura, após fitar rapidamente os olhos assustados que eu quereria amar. 

Energia desperdiçada com os últimos amores. Muita energia desperdiçada. Eu não caibo em nenhum deles, nenhum consegue me compreender. Falta percorrer o caminho, falta entender a importância das palavras. Metade de mim é palavra.  

Amanhã o mar chorará de manhã, pegarei o primeiro avião depois que o sol nascer e a ausência de meu amor, esse amor que aprendi a sentir por Salvador, será sentida. Os sentimentos mudam a cada chegada e partida e não estou mais ansiosa, apenas a saudade de casa me faz querer sair daqui. 

"Porque metade de mim é abrigo
E a outra metade é cansaço"

violentar-se

Publicado em 17/12/2013

eu quero que você me engula
mas antes, mastiga minha alma
crava os dentes com força na minha pele
na parte mais suja e humana de mim

me massacra, me tritura, me  degusta
me dissolve na sua saliva
e sente na língua a textura dos meus medos
o furor das minhas vontades
e o amargo da minha solidão

até que dentro de você eu me torne
essa bola indigesta que sou
e se você não me botar pra fora
não me expulsar, não me vomitar
até sentir o gosto da bile na garganta

eu fico

eu fico e estanco o sangue que jorra
do pedaço que você arrancou
eu fico e viro água com açúcar
pra tirar o gosto ruim da sua boca
toda vez que eu te beijar

salvador, 09/12

Publicado em 09/12/2013

ontem foi o dia em que fiz as pazes com salvador. chorei e pela primeira vez não senti vontade de ir embora daqui enquanto chorava, porque a tristeza estava em qualquer lugar menos na culpa que eu atribuía à cidade. tudo está e sempre esteve dentro de mim, o ódio, a gratidão, os pesadelos dos quais me livrei essa semana. e essa inquietude, essa sede e esse desgosto que tem exigido uma paciência e uma flexibilidade que francamente, não possuo. tenho sido severa e intolerante comigo, ontem senti vontade de abandonar meu corpo ao perceber que me tornei alguém que eu não queria ser, alguém de quem não sinto orgulho. tenho medo ao pensar em voltar ao mesmo lugar da mesma forma que saí, mas ainda bem que há tempo. "sempre há tempo" é o que tenho dito para viver os dias com calma e encontrar a paz. a mesma paz silenciosa que aparece depois dos furacões e se instala como se nada tivesse sido devastado. uma tempestade ainda acontece dentro de mim e eu não sei o que sobrará do que um dia fui. talvez essa tempestade dure a vida inteira e até meu último sopro seja um furacão, mas o que desejo é a constante reconstrução e força, muita força para deixar para trás o que for necessário. às vezes é preciso apropriar-se da posição de observador, de investigador de si, e olhar para os fatos sem culpa e com frieza. se não for assim, não há quem consiga permanecer em pé sem ser derrubado pelo peso do passado. 

salvador, 03/12

Publicado em 03/12/2013

"por isso, caro senhor, ame sua solidão e suporte a dor que ela lhe causa com belos lamentos. pois os que são próximos do senhor estão distantes, é o que diz, e isso mostra que o espaço começa a se ampliar à sua volta. se o próximo está longe, então o que é distante vaga entre as estrelas, na imensidão. alegre-se com seu crescimento, para o qual não pode levar ninguém junto, e seja bondoso com aqueles que ficam para trás, seja seguro e tranquilo diante deles, sem perturbá-los com as suas dúvidas e nem assustá-los com uma confiança ou alegria que eles não poderiam compreender." rainer maria rilke

me livrei da única pessoa que burlava minha solidão aqui. e agora me sinto realmente livre da beleza aparente que me cegava para o resto das coisas bonitas que existem nesse lugar. compreendo, cada vez mais, que algumas belezas não me servem, ou não devem servir, e que a arrogância é o pior dos defeitos. tenho ainda três semanas antes de voltar para casa para restabelecer minhas forças e pela primeira vez desde que cheguei aqui, sinto que estou mergulhada em um certo equilíbrio. ainda não estabeleci uma rotina produtiva e nem creio que consiga alcançar isso até o fim, tenho dormido muito como fuga e meus horários não possuem nenhuma constância, sempre chego ao fim do dia sem ter feito metade do que deveria, mas tenho tentado ser razoável e não me punir por nada, aceitando tudo como parte de um crescimento inevitável que virá como resultado de todos os acertos e fracassos. tenho pesadelo quase todas as noites, mas nem isso diminui minha sonolência. noite passada acordei chorando às quatro da manhã após sonhar com a morte de meu pai e depois de passar algumas horas me recuperando, tratei de aproveitar meus últimos minutos de sono. como se voltar até lá constituísse um ato de coragem e eu estivesse disposta e preparada para enfrentar tudo novamente. quando voltei a dormir o pesadelo continuou, como se o ato de acordar e descobrir que se tratava de um sonho também fizesse parte do enredo. apesar dos pesadelos, do excesso de sono e das crises, que hora ou outra acabam aparecendo, sinto-me mais equilibrada e segura. estou cansada de salvador de uma forma física e espiritual, contudo não sinto o peso em meus ombros por uma simples questão de consciência. não quero que o tempo passe mais rápido, quero apenas que tudo aconteça como deve acontecer. me apropriei de uma paciência e serenidade que retirei de um lugar fundo dentro de mim até então desconhecido, e elas têm me ajudado a viver com calma minhas perguntas e não exigir que as respostas cheguem claras e certas, e sim na mesma lentidão que tenho experimentado dia após dia, sem perceber. parei de medir o que quer que seja em qualquer proporção que venha de fora para dentro, portanto os dias tem sido infinitos para o meu coração por mais que sejam muito curtos para quaisquer afazeres. ana me indicou outra leitura fantástica, e agora, além de anaïs, tenho também a companhia de rainer maria rilke, e de sua simplicidade expressa em cada carta de "cartas ao jovem poeta". de todas as pessoas que estão longe, ana é a que mais se faz presente, me tornando forte e me dando coragem nos momentos mais inusitados. sábado passado enquanto todos em casa dormiam, fui à praia sozinha porque ela me encorajou e conheci thaise, a garçonete que conversou comigo sobre livros. disse que preferia cigarro artesanal porque matava mais sua vontade e confessou que gostava de ler depois de chegar em casa e tomar seu banho, disse que lia sobre novelas e atores e perguntou do que se tratavam o livro e a revista que eu lia. sentou-se comigo na mesa algumas vezes nos intervalos e me contou sobre como gostava de conhecer pessoas novas e me pediu pra não ir embora tão cedo porque gostava de me ver ali sentada. estou orgulhosa por ter chegado até aqui e sei que ainda falta muito mas já posso afirmar que irei até o fim. afirmo não com a inocência de quem supõe prever o próprio futuro, mas com a força e a fé de quem insiste no que é difícil por saber que "o fato de uma coisa ser difícil tem de ser mais um motivo para fazê-la". a facilidade não me levará a nada, como a beleza vazia que deixei para trás. é preciso percorrer um caminho para chegar ao que é verdadeiramente belo, mesmo que no fim esse caminho apenas reforce a impressão inicial. sou adepta à simplicidade do amor e da beleza, mas tenho aprendido que por mais belo que algo pareça ser, para que sua beleza se concretize realmente, é necessário ir além do encantamento inicial e inocente. meu esforço é para que este momento não me sirva apenas como enfeite e que de fato se concretize em mim como parte integrante do meu ser e como algo que tornará minha vida, cada vez mais, verdadeiramente bela.

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