Acorda rigorosamente antes das sete e vai para o quintal
pentear os cabelos longos e brancos, tão claros quanto o amanhecer. Faz o coque
que durará até a hora de dormir e providencia o café doce e forte. Costumava
murmurar sobre a demora da morte mas abandonou a mania com a chegada da bisneta
Mellina Rosa, dos cabelos loiros e encaracolados, cujo abraço é tão forte que
quase chega a derrubar. A menina aprendeu, não se sabe como, a chamá-la de vovó
querida e esse afeto tão puro e espontâneo aparentemente adiou sua vontade de
ir embora.
Mellina não foi a primeira nem a última, antes dela nasceram
quatro e depois dela mais dois. Sua importância vem da mãe, criada a vida
inteira pela “vovó Tereza”. Quando era bem pequena, Nayane foi passar uma
temporada na casa da avó porque a mãe, Claudina, não tinha condições de criar
os três filhos. Depois de um ano a temporada deveria chegar ao fim, mas a
netinha ficou doente longe da avó e essa quase morreu de paixão. O passeio
durou a vida inteira, até o casamento de Nayane, de onde saiu o fruto, a
bisneta tão querida que deu vida à vida da bisavó.
Depois de passar o café, compra o pão no mercado da esquina.
Embora o corpo esteja fraco e a pernas trêmulas anunciem o auge dos 89 anos,
nem pensa em dispensar as caminhadas diárias. Chega a ir ao mercado três vezes
no mesmo dia. Os pães sempre são contados de modo que sobrem para amanhã, não
porque alguém na casa goste de pão amanhecido, mas é que as visitas esperadas nunca
chegam, não na mesma hora. O importante, ela pensa, é estar sempre preparada
para receber quem quer que seja.
Há quem diga que é uma mulher de sorte com tantas companhias
e a campainha que toca o dia inteiro movimentando a casa e o coração. Além da
neta, o filho mais velho também foi morar com ela logo que se separou da
esposa. Fora o fato de livrá-la da solidão, Ruremar não deu muitas alegrias. Taxista
e alcóolatra, recentemente abandonou o ofício depois de ser pego dirigindo
embriagado. Por sorte, ou pelas orações da mãe, nunca sofreu nenhum acidente
grave e está largando o vício. A embriaguez se tornou rara e no meio de semana
se ocupa de algumas atividades como varrer o quintal, colocar o lixo para fora
e assistir televisão. Mas a gratidão e necessidade de cuidado que a mãe sente
por ele vêm desde tempos remotos, quando o marido morreu e ele a ajudou a criar
os cinco irmãos.
A história de Terezinha é uma história de amor que poderia
ser facilmente confundida com com romances de filmes e livros que circulam por
aí. Quem a vê às oito da manhã tomando leite com café de forma tão calma, nem
imagina sua trajetória. Tudo começou por volta de 1947. De família tradicional
em Buriti Alegre, no interior de Goiás, costumava andar a cavalo com os irmãos
na redondeza da fazenda onde moravam. Em um desses passeios conheceu o amor de
sua vida, Ronan. Ele estava encostado na porteira da fazenda em que trabalhava.
Rapaz bonito, alto, chamou sua atenção. Naquele dia não conversaram muito, mas
pouco tempo depois descobriria que Ronan não tinha pai nem mãe, e muito menos
dinheiro. Mas era trabalhador e para ela isso bastava.
Começaram a namorar e, como era de se esperar, a família não
apoiava o romance, arrumaram inclusive um noivo de origem rica para que ela
pudesse se casar o mais breve possível. Mas não adiantou, Terezinha amava Ronan
e já havia decidido que não se casaria sem amor. Dito e feito – fugiram na
calada da noite sem deixar nenhum sinal. Foram andando até Buriti Alegre e de
lá pegaram um carro para a cidade vizinha, Morrinhos, onde se casaram no outro
dia. Depois, foram de caminhão até Ceres, onde alguns familiares de Ronan lhes
dariam abrigo.
Logo ela mandou uma carta para a família junto com a
certidão de casamento e obviamente não obteve resposta. Quando perceberam que
ela havia fugido, a preocupação foi outra. “Era eu que guardava o dinheiro do
meu pai e na hora que eles deram falta de mim, dizem que ele foi direto pra
procurar, ver se eu tinha carregado o dinheiro, e eu não tinha levado nada. Eu procurava
dar um jeito de juntar meu dinheiro”, conta. Na ocasião, um irmão chegou a
dizer que ela deveria ter levado pelo menos uns dez contos, que era pra não
passar fome por lá.
Não pôde voltar em casa por muito tempo, sob risco do pai e
os irmãos matarem o marido. A mãe não era tão rígida, mas também tinha medo,
por isso achava melhor que a filha continuasse longe. “Depois de muito tempo,
quando eu voltei lá meu pai já tinha falecido. Não despedi do pai”, fala em tom
de tristeza e arrependimento. Não se arrepende de ter fugido por amor. Se
pudesse, faria tudo outra vez, do mesmo jeitinho. No entanto, isso não diminui
a tristeza que sente por nunca ter se despedido direito do pai.
Só depois que ele faleceu, ela voltou na fazenda para
visitar a mãe e os cinco irmãos – quatro homens e uma mulher. Eles não
guardavam mais rancor, mesmo a pior das mágoas ameniza com o tempo. Terezinha
era vista como uma rebelde pela família que, apesar de tudo, não deixou de
amá-la. Hoje, ela é a única que ainda permanece viva. Vai fazer dois anos que o
último irmão, o mais novo, morreu. A morte é sua maior tristeza, tantas pessoas
que perdeu ao longo da vida. Lamenta, mas continua firme. A liberdade de ter
feito as próprias escolhas lhe deu forças para seguir em paz por tantos anos.
Depois do café, é hora das obrigações. Primeiro, rega as
plantas com cuidado, a cebolinha está quase grande e os ramos de chá são o
melhor remédio quando alguém adoece. Em seguida, é hora de lavar as roupas,
sempre há alguma peça leve para lavar na mão. As brancas, coloca dentro de uma
sacola com água e sabão e põe no sol para clarear. Lavar roupas é quase um
ritual diário, a tarefa doméstica preferida e que já serviu até como fonte de
renda. Houve um tempo em que lavava roupa na vizinha em troca de leite para os
filhos e pedaços de sabão, logo após a morte do marido.
A essência de Ronan era nômade, ele não aguentava ficar
muito tempo no mesmo lugar. Trabalhava em fazendas, na fabricação de tijolos e
sempre dava um jeito de ser transferido para outra cidade onde ganharia mais
dinheiro ou supostamente teria mais oportunidades. A intenção era sempre arrastar
consigo a esposa e os filhos, mas ela não ia assim tão fácil: “Eu posso ir com
você, mas só se for onde os meninos possam estudar”.
Quando compraram uma casa na cidade de Porangatu com o
dinheiro de uma herança que Terezinha recebeu, ele não cessou enquanto não
venderam. Houve uma vez, ela conta, que um homem queria dar um carro em troca
da casa: “e ele falou, não mas ele já passou os documentos pra mim. Aí eu falei
mas eu não assino porque a casa é no meu nome também”. Depois, se mudaram e
tiveram que vender a casa, segundo ela, por “mixaria”. Receberam errado,
venderam alguns móveis e outros deram para os vizinhos.
Primeiro foram para Conceição do Araguaia, no Pará. Ficaram
lá alguns dias, alugaram uma casa perto de uma olaria onde um dos filhos chegou
a trabalhar. Mas não ficaram muito tempo, logo Ronan levou a família para
Redenção do Pará, sem saber que lá seria enterrado. Também seria por lá que a
segunda filha, Vera Lúcia, firmaria as raízes que duram até hoje. Vera sempre
teve um temperamento calmo, como das enfermeiras que não se deixam contaminar
pelo desespero do paciente. Mesmo sem formação, acabou se infiltrando na área
da saúde. Começou trabalhando na lojinha de um casal que, entre tantas outras
mercadorias, também vendia remédios. Depois, um rapaz que tinha uma farmácia
perto do hospital a chamou para trabalhar. E por fim, ela foi trabalhar no
hospital.
Em Redenção, Vera conheceu seu marido, Zé Mario, do qual é
divorciada hoje. Tiveram quatro filhos e ela adotou como suas outras duas
filhas dele com outra mulher. Hoje, ela vive dividida. Passa um tempo em
Redenção, com a família que criou, e um tempo em Goiânia, cuidando da mãe. Vera
deve chegar mês que vem, mas enquanto não está aqui, é Terezinha quem se
encarrega do almoço. Cozinhar não é seu ofício preferido, mas faz de bom grado o
arroz, o feijão e a carne, sagrados. Às vezes frita uma banana ou corta um tomate
para variar um pouco. Costuma chamar todos em casa para almoçar, e quando dizem
que não, ela considera uma ofensa.
Mais do que respeito, os filhos têm grande admiração pela
mãe. Apesar de ter ficado viúva tão cedo, nunca teve outro homem e talvez por
isso tenha a imagem santificada por todos ao redor. Mas sem esforço, naturalmente,
ela faz por onde. Sua postura condiz com o altar no qual a colocam. Possui a
serenidade e calma de uma capricorniana e apesar de não compreender muitas
coisas dos tempos atuais, não se acha no direito de julgar. Além de tudo,
conserva até hoje o estilo clássico dos anos 50, usando apenas vestidos, sempre
com as anáguas por baixo.
Quando Renan morreu, fazia quatro anos que moravam em
Redenção. “Lá ele trabalhava em uma fazenda e o povo gostava muito dele. Era um
sábado quando ele chegou em casa e na hora de deitar reclamou de dores no
corpo. Aí eu falei, então amanhã você não vai trabalhar, vai consultar
primeiro, tomar os remédios pra depois ir”, conta. No outro dia cedo ele foi ao
hospital onde a filha trabalhava, onde o internaram, ainda com muitas dores.
“Mas lá não descobriram o que era, ele continuou passando
mal e eu falei que se ele não melhorasse eu ia levar ele pra Conceição. Ele
tinha um compadre que era conhecido e gostava muito da gente, que também era de
Porangatu e até morou na nossa casa um tempo. E aí eu arrumei pra ele internar
o Ronan em Conceição e fiquei cuidando da casa e dos meninos, três ainda eram
pequenos. Mas depois eu deixei a Vera por conta, fiz tudo que tinha que fazer
em casa e fui ficar com ele no hospital. Ele fez os exames e eu falei que se
curasse eu deixaria ele lá, se não, ia trazer pra Goiânia”, relembra.
Em Conceição não havia laboratório próprio para fazer os
exames mais detalhados, e a alternativa foi levá-lo para Goiânia. Foram num
avião da fábrica que Ronan trabalhava, levados pelo gerente da fábrica. A
internação seguiu a chegada e no outro dia, quando fizeram os exames, o
resultado: câncer de fígado. Mesmo assim, ele não quis ficar para se tratar:
“Ele quis ir embora de todo jeito por causa dos meninos que tinham ficado lá.
Quis voltar e nós levamos um monte de remédio. Aí nós chegamos lá num domingo e
ele morreu no sábado, durou uma semana só”.
Apesar da tristeza e da viuvez precoce, ela afirma que “foi
melhor do que ficar sofrendo”. Ronan morreu aos 44 anos, pouco mais de um mês
depois de sentir as dores naquele sábado. Depois de seu falecimento, a família
ainda morou dois anos em Redenção do Pará. Ruremar, o filho mais velho,
trabalhava dia e noite para ajudar a mãe a criar os irmãos e buscava a lenha
para alimentar o fogão à lenha e a família. Ao fim dos dois anos, mudaram-se
para Goiânia, onde Terezinha tinha família e onde moram até hoje. Ficou um
tempo com um irmão, depois pagaram aluguel, ela costurava e lavava roupas para
ganhar dinheiro. “Não era fácil”, ressalta. Os filhos também trabalhavam para
ajudar, os mais velhos assumiam a responsabilidade pelos mais novos e no fim,
mesmo em meio às dificuldades, nenhum deixou de estudar.
Ruremar foi o que menos estudou, devido à grande
responsabilidade que assumiu com a morte do pai. Vera ficou por muito tempo na
área da saúde. O terceiro filho, Paulo Silas, que tem seu nome graças à amizade
entre os discípulos, virou contador. Ronildo foi farmacêutico mas abandonou o
ofício antes da hora por insanidade mental. Rubens foi policial, guarda de
trânsito, sempre sorridente e cheio de carisma, daqueles que conquistam todos
ao redor. Parou de atuar depois de sofrer um acidente de moto e ser aposentado
precocemente. Cláudia, a mais nova, apesar de ter recebido estudo diferenciado
dos outros, em escola particular e adventista, escolheu se casar cedo e não deu
muita sorte. Recentemente separou-se do marido para aparentemente viver o
verdadeiro amor.
Depois do almoço, Terezinha cochila e quando acorda vai para
o quintal ler a bíblia na cadeira branca do jardim. Há doze anos está na Igreja
Universal, atraída por um programa de televisão. No início, ia às terças, na
sessão do descarrego, até preferir algo mais calmo. Hoje frequenta a igreja aos
domingos, todos, sem cessar. Sempre na unidade central, a catedral. Filhos e
netos se alternam na missão de levá-la e buscá-la toda semana. Outro dia voltou
de taxi e não acertava o caminho de casa, diz que não sabe o que aconteceu,
simplesmente “deu branco”. O fato serviu de alerta para que não a deixem voltar
sozinha mais.
Acredita que o filho largou o alcoolismo graças às suas
orações. Como a casa inteira mata a sede no seu filtro de barro, costuma ungir
a água e jogar dentro para que a família seja abençoada. No último domingo, o
pastor ofereceu um papel para que os fieis listassem seus medos e os
eliminassem por meio de uma campanha de oração. Terezinha rejeitou, sob o
pretexto de “não tenho medo de nada”. De fato, 90 anos deve ser tempo
suficiente para superar os medos. Ou para vivê-los, como ela viveu tantas
mortes e viu tanta gente que amava ir embora.
Às 18h30 em ponto, fala sobre a beleza do sino que toca na
igreja vizinha. Em seguida, espera o filho, Paulo, e a nora, Jaqueline,
chegarem para conversarem no quintal. Com quase 30 anos de união, Terezinha
mora com eles desde que se casaram. Quando foi propor à esposa que a levassem
junto, Paulo disse: “se você me pedir para escolher entre você ou minha mãe, eu
vou escolher você, mas tenha certeza de que nunca serei plenamente feliz”. Ela
aceitou e desde então moraram em duas casas, as duas com um barracão no fundo
para abrigar Terezinha, que faz o possível para nunca interferir na vida do
casal. Se alguém contesta, Jaqueline logo rebate o estereótipo de sogra dizendo
que a dela é diferente. E é.
Quando a lua surge no céu, mostra para mim, sua neta, a
Estrela Dalva. Dizem que não se trata de uma estrela e sim de um planeta, Vênus
- mesmo nome da deusa romana do amor. Todos os dias, dessa ou de outra maneira,
ela aponta para o amor e me mostra o quanto brilha e clareia tudo ao redor.
Minha vó é uma espécie de estrela, uma espécie de luz que carrega poesia em
cada ruga. Sinto que herdei dela mais que o signo do zodíaco e uma parcela de
calma, mas ainda não achei em mim a coragem que a fez ser o que é. Minha avó é
a pessoa mais corajosa do mundo. E essa é uma história sobre o amor.