Abelhas

Publicado em 09/09/2015

Não morremos quando o corpo deixa de funcionar. A morte começa na primeira fatia de coragem perdida. Na juventude, traiçoeira. De repente acordamos cedo para conseguir dinheiro e lutamos para sobreviver, mas não cantamos com a mesma força e nem nos deixamos consumir pelo que realmente importa. Saio de casa séria com meu vestido vermelho e óculos quadrados para selecionar notícias. Sinto falta das gargalhadas despretensiosas, já nem me embriago mais. Tenho ao meu lado uma aquariana com sede de vida que felizmente se embriaga por mim. As atitudes pesam como uma cena de cinema que custa um milhão de dólares para mudar. E então decido que levarei a vida como quem escreve um livro, rabiscando e reescrevendo, rasgando, jogando fora os erros. Mas nesse exercício também recai o peso do perfeccionismo e por fim estou tão obcecada que tudo me parece errado. As palavras estão fora do lugar. Dos modos metafóricos de levar a vida, me agrada mais a sugestão de Rilke: “Assim como as abelhas juntam o mel, reunimos o que há de mais doce em tudo e o construímos. É com o que há de menor, com o que há de insignificante que começamos”. Essa é a única razoabilidade da vida, nossa salvação. Vejo fotos antigas e sinto inveja de mim, tão sorridente com meus cabelos longos. Sei que a alegria inocente de outrora não me pertence mais, mas a ausência de reconhecimento é a prova da transformação. E as coisas que ganhei nesse meio tempo? A consciência de que nunca estarei pronta, ainda bem. Como me disse André Rodrigues, só os despreparados sobrevivem ao amor. É por isso que as crianças ainda detêm as verdadeiras virtudes. Encantam-se com as cores das bolhas de sabão e flutuam no ar como elas. E nós, grandes tolos e tolas, estamos apressados demais nos preparando para o abatedouro. Tão contidos e cerimoniosos, caminhamos lentamente para a morte discreta dos que deixam de viver.  

Para refletir sobre a passagem do tempo: Lista, de Oswaldo Montenegro.

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