Não morremos quando o corpo deixa de funcionar. A morte
começa na primeira fatia de coragem perdida. Na juventude, traiçoeira. De
repente acordamos cedo para conseguir dinheiro e lutamos para sobreviver, mas
não cantamos com a mesma força e nem nos deixamos consumir pelo que realmente
importa. Saio de casa séria com meu vestido vermelho e óculos quadrados para
selecionar notícias. Sinto falta das gargalhadas despretensiosas, já nem me
embriago mais. Tenho ao meu lado uma aquariana com sede de vida que felizmente
se embriaga por mim. As atitudes pesam como uma cena de cinema que custa um
milhão de dólares para mudar. E então decido que levarei a vida como quem
escreve um livro, rabiscando e reescrevendo, rasgando, jogando fora os erros.
Mas nesse exercício também recai o peso do perfeccionismo e por fim estou tão
obcecada que tudo me parece errado. As palavras estão fora do lugar. Dos modos
metafóricos de levar a vida, me agrada mais a sugestão de Rilke: “Assim como as
abelhas juntam o mel, reunimos o que há de mais doce em tudo e o construímos. É
com o que há de menor, com o que há de insignificante que começamos”. Essa é a
única razoabilidade da vida, nossa salvação. Vejo fotos antigas e sinto inveja
de mim, tão sorridente com meus cabelos longos. Sei que a alegria inocente de
outrora não me pertence mais, mas a ausência de reconhecimento é a prova da
transformação. E as coisas que ganhei nesse meio tempo? A consciência de que
nunca estarei pronta, ainda bem. Como me disse André Rodrigues, só os
despreparados sobrevivem ao amor. É por isso que as crianças ainda detêm as
verdadeiras virtudes. Encantam-se com as cores das bolhas de sabão e flutuam no
ar como elas. E nós, grandes tolos e tolas, estamos apressados demais nos
preparando para o abatedouro. Tão contidos e cerimoniosos, caminhamos
lentamente para a morte discreta dos que deixam de viver.
Para refletir sobre a passagem do tempo: Lista, de Oswaldo
Montenegro.