No colégio interno diziam que para ser salva eu teria que
abrir mão de quem eu era. “Cada um tem uma penitência, escolhida por Deus” e o
meu desafio nesse mundo era não ser eu. Alguma coisa continuaria presa aqui
dentro, como o pássaro azul no peito de Bukowski, e minha função enquanto ser
humano seria mantê-la inerte, imóvel. Era esse o preço da eternidade.
O artifício da religião é a culpa. E a gente só domina a consciência, só se livra
do peso quando aprende que há muitos caminhos possíveis e que nem mesmo as
crianças acreditam mais em verdades absolutas. Outro dia Mellina, minha
afilhada de cinco anos, me perguntou se pontes também eram feitas para gente ou
só para carros e fiquei sem resposta. Depois, no carnaval, da janela do hotel
em Belo Horizonte eu vi o Viaduto Santa Tereza tomado por foliões e senti
vontade de ligar para ela e dizer que sim, as pontes também são feitas para
gente (pelo menos no carnaval).
Tenho fé que minha razoabilidade veio depois de ler Vinícius
relativizando o infinito. Ele usava amor como argumento. O mesmo amor que me
fez reconsiderar a salvação. Em algum momento passei a acreditar que ela se
deitaria ao meu lado na cama. Na verdade, minha crença alterna entre isso e
entre pensar que nunca estarei a salvo. Mesmo no auge da desilusão - cheguei ao
ponto crítico em que a simples possibilidade de aproximação causa desconforto -
imagino momentos de trégua com minha respiração noutras costas. Imagino uma
cena de filme francês, os olhos atravessando o salão no meio da festa e a
certeza de ter encontrado minha pessoa no mundo.
Segue a todo vapor a necessidade de uma liberdade que
pressupõe solidão. Não a solidão permanente e impenetrável, mas a solidão como
medida, como regra. Há quem diga que o ceticismo é melhor do que a ilusão. Se
for assim, estamos bem. Haverá momentos em que somente a ausência de expectativa
nos trará paz. É preciso entender que dias, meses ou anos serão perdidos no que
diz respeito às relações humanas. Mas mesmo o fracasso deve ser respeitado e
compreendido como um elo já que nossa maior semelhança sempre foi a fraqueza, a
insignificância. Do amor, não espero menos que a salvação. Por isso canto em
consonância com a voz rouca de Cohen, I’m ready my Lord.