Fui ameaçada de morte pela mãe da mulher que eu amava.

Isso já faz muito tempo. Sei que aos 15 anos ainda não deveríamos ser chamadas de mulheres, mas não consigo dizer de outra forma quando penso nas escolhas que fui obrigada a fazer naquela época. E sei que não sou um caso único. A verdade é que a maioria de nós se torna mulher muito cedo, infelizmente.
Não senti medo pela minha vida. Àquela altura do campeonato, a descoberta do amor - ou da paixão - importava mais do que qualquer coisa. 

Não senti medo até ver minha mãe chorando encolhida no chão do banheiro. Com os braços abraçando os joelhos, dizia que eu precisava resolver aquilo imediatamente, caso contrário seria ela quem daria cabo da própria vida. Não pensei racionalmente se estava falando sério ou se era um blefe, mas eu é que não ia pagar pra ver. Isso aconteceu depois de uma ligação ameaçadora da mãe de A. Nunca saberei exatamente o que ela disse.

Naquele dia, senti que aquela não era mais minha casa. Mais do que minha mãe, era como se a própria casa me repelisse, me expulsasse. Como na vez em que o cachorro fugiu e me acordou no meio da noite batendo forte no portão para que nunca mais eu tivesse uma noite tranquila naquele lugar.

Ou como nas vezes em que eu levava alguém para dormir comigo, sempre uma amiga que era mais do que uma amiga, e minha mãe acordava chorando. Sem alarde, mas com olhos inchados, marejados. Uma estranheza sobre a qual nunca falávamos, com a intenção de que eu percebesse o quanto aquilo a machucava.

[Aquilo era eu.]

Me pergunto se ela tentaria esconder o choro se soubesse quantas vezes ele voltaria a me atormentar.
Foram duas, no máximo três vezes, mas para mim era como um loop. Eterno. Como se a cada vez que acordasse naquela casa eu tivesse que encarar, no rosto dela, a decepção.

Depois da cena no banheiro e de entender que sim, eu precisaria dar um jeito naquilo, decidi que queria ir para longe. Era preciso tomar distância para compreender meus limites e entender de fato que parte me cabia daquele choro. Encontrei um lugar perfeito a uns 100 quilômetros dali. Um colégio interno.

Organizei os trâmites e pedi para que ela e meu pai me levassem até lá. O pedido partiu de mim. Era o álibi perfeito para que pudessem se eximir da culpa. Afinal, eu estava arrumando minha própria bagunça.

Essa foi minha primeira fuga. Por isso imagino que foi tão libertadora. Diferente da maior parte das pessoas que se sentia em uma prisão, eu estava, finalmente, livre. Protegida das ameaças da mãe de A.. Mas, sobretudo, do sofrimento de minha mãe.

Num colégio interno de uma cidade de interior em pleno século 21, as pessoas, no geral, são reconhecidas a partir de seus erros. Cada um estava lá por um motivo específico, para consertar alguma coisa. Os delitos mais comuns envolviam drogas ou sexo. Mas me lembro de uma amiga que estava lá porque foi pega roubando algum objeto em uma loja no shopping. Por causa dos nossos erros nos encontrávamos.

Eu estava destemida em meu plano de fuga. E, talvez por isso, no dia em que cheguei ao colégio interno foi quando me senti em paz. Finalmente estava experimentando a consequência dos meus atos e aquilo era de uma paz inexplicável.

Havia regras rígidas para roupas, horários, cultos, alimentação, o que, quando e como poderíamos fazer. Todos os dias éramos acordadas às 5 da manhã com uma música adventista tocando nas caixas de som que ficavam nos corredores, e então íamos ao primeiro culto do dia, depois comíamos, assistíamos às aulas e almoçávamos. Depois do almoço algumas trabalhavam para ter desconto na mensalidade, outras estudavam. Era proibido sair do “residencial feminino” (era assim que chamavam o lugar onde as meninas dormiam, que não era o mesmo lugar onde os meninos dormiam) mostrando ombros ou joelhos e, aos sábados, éramos proibidas de fazer qualquer atividade que configurasse trabalho.

Mas todas aquelas regras soavam para mim como um detalhe muito pequeno perto do que vivi até chegar ali. Havia brigas maiores que eu travava naquele exato momento. E a maior delas era comigo. Quando tentava negar quem eu era, o que eu sentia, o desejo que me movia. E era difícil não brigar com esse desejo quando o tempo inteiro me diziam que isso era o certo a se fazer.

No colégio interno diziam que, para ser salva, eu precisaria abrir mão de quem eu era. "Todo mundo tem uma penitência escolhida por Deus”. E o meu desafio nesse mundo era não ser eu. Alguma coisa permaneceria presa aqui dentro e minha missão enquanto ser humano seria mantê-la inerte. Imóvel. Era esse o preço da eternidade.

Eu ainda estava descobrindo qual era minha ideia de salvação. Em algum momento passei a acreditar que a salvação se deitaria ao meu lado na cama. Na verdade, minha crença alternava entre isso e pensar que eu nunca estaria a salvo. 

Às vezes é preciso abrir mão de algumas crenças para seguir.

No início da descoberta da doença de minha mãe, me empenhei na leitura de artigos científicos, reportagens, entrevistas, tudo que encontrava pelo caminho a respeito do assunto. A suspeita inicial era de que se tratava de um pseudomixoma peritoneal, ou um adenocarcinoma. E assim, da noite para o dia, aquela lista de nomes complicados passou a sair da minha boca com uma naturalidade estranha.

Conforme o diagnóstico avançava, confusa e lentamente, e nos aproximávamos mais do câncer de pâncreas, comecei a me dar conta de que mergulhar a fundo nas pesquisas não ajudaria em nada. A cada artigo minha esperança ia minando. E então decidi, pelo bem de todos, especialmente da minha sanidade , abrir mão da ciência.

A melhor resposta, a resposta que eu queria ouvir, veio da boca de Lyz, a cartomante. Sim, minha mãe ficaria bem. Um sim, qualquer sim, era tudo que eu precisava para seguir. Segundo Lyz, haveria um processo de reabilitação, alguém voltaria para casa (como eu estava voltando eventualmente). E no final, o mais importante: ela ficaria bem.

Essa resposta me custou cinquenta reais. E me agarrei a ela muito mais do que aos artigos e toda a literatura científica. A esperança não custa caro. Por isso, decidi ignorar que o “ficar bem” de Lyz poderia ter outros significados subjetivos. Ficar bem em outro plano, quem sabe? As cartas acreditam em reencarnação?
 
***

Estamos no hospital onde eu nasci, Hospital Santa Helena. A largura dos corredores denuncia a idade do lugar, mas alguns ambientes reformados e bem iluminados dão a impressão de que tudo aqui é novo, como a recepção em que eu e meu pai esperamos por um sinal do médico.

Não tenho nenhuma lembrança desse hospital. Não sei se voltei lá depois de nascer. A única imagem que tenho é de minha mãe sendo repreendida pelo médico por ficar em pé antes da hora, depois da cesariana, pra me dar de mamar. Ela já me contou isso algumas vezes, mas não sei que cara tinha o quarto, qual a cor dos lençóis ou da roupa cirúrgica que ela usava. 

Hoje ela faz a segunda videolaparoscopia. Por meio de pequenos furos em sua barriga, o médico introduz um laparoscópio, que é um tubo metálico com uma câmera na ponta, para que ele veja exatamente como está por dentro seu abdômen. Também estão sendo coletadas novas amostras para a biópsia, já que o primeiro exame fora inconclusivo.

Três ou quatro horas depois, o médico aparece na recepção e nos diz que o câncer se confirmou, mesmo antes do resultado da nova biópsia. Foi o que as microcâmeras que entraram dentro dela mostraram. As amostras de cinco lugares diferentes já estão a caminho do laboratório. O tipo de célula determinará o tipo de tratamento. Ainda não sabemos se o próximo passo será uma cirurgia ou o início das quimioterapias.

Eu e papai nos olhamos, agradecemos a empatia do médico e tentamos nos agarrar às notícias positivas, embora elas quase não existam. Ele usou a expressão “pouca doença” e repetimos isso para nós mesmos até nos convencer de que seria um pequeno problema e seríamos fortes o suficiente para lidar com tudo.

Minha mãe sai da sala de cirurgia e vai para o quarto, onde a espero.

Enquanto ela dorme na maca com sua roupa verde água de hospital, o chão do quarto treme de forma compassada, quase como uma respiração. Acho que estamos em cima de alguma casa de máquinas. Nunca soube que havia casa de máquinas em um hospital e nem que poderia ser sentida tão intensamente.

Durante o efeito da anestesia geral, ela sonhou que atravessava três grandes rios. E quando tentou pegar um atalho foi avisada de que o caminho mais curto não tinha saída. Ele não levaria a lugar algum.

Um a um, ela ia atravessando os três rios, separados por faixas de areia.

Conforme ela atravessava os rios, eles transbordavam rapidamente e ela percebeu que não seria possível voltar pelo mesmo caminho. Uma voz confirmava que era mesmo um caminho sem volta, por isso não haveria outra escolha que não fosse seguir. Em frente, sempre em frente.

Além dessa voz que ditava as regras, havia também a minha voz. Na verdade, não apenas a voz, eu estava inteira ali. E meu papel, segundo minha mãe, era guiá-la na travessia. Dizer onde pisar, qual o melhor caminho, que fosse por ali e não por aqui.

À primeira escuta, tudo parece muito bonito. Alguns minutos depois já não sei se estou pronta. Acho que não vou conseguir.

O lugar de onde saímos quando tudo isso começou não existe mais.


tudo começa na angústia
do desejo não vivido
o mistério do que seria
a dor de deixar 

a palavra começa na angústia

quem é você que

i don’t know you at all?

quero deitar no seu colo
e te dizer o que ficou pelo caminho
que deixei ficar
para estar aqui


colégio interno

 

eu volto ao mesmo lugar

quando quero ficar em paz

ou quando sinto que uma transformação se aproxima 


as folhas brancas das arvores de algodão 

a pista de corrida improvisada

os bancos vermelhos de cimento no meio do nada


hoje eu voltei até lá de novo

para tentar descobrir o que deixei para trás 

qualquer coisa que afeta diretamente minha vontade de viver 


sinto que estou devendo algo para a menina Bárbara

talvez um pouco de vida, de gratidão 


alguma peça do meu quebra-cabeças se perdeu no caminho


suspeito que tenha ficado lá

enquanto eu achava que não doía

e dizia pra mim e pros outros que nunca houve trauma

que nunca houve crise


sempre esteve tudo sob controle

menos quando entreguei os pontos

e sem perceber perdi boa parte da alegria, da vontade, do tesão que deveria me inundar a essa altura da vida


quantas vezes fui inteira nesses últimos anos?

é possível se sentir inteira nesse mundo?


caminho pela grama extensa

sento no banco do refeitório 

ainda bem que ainda há tempo


por enquanto 


é tempo de resgatar a vontade perdida


já se passaram mais de dez anos

quantas vezes mais será necessário voltar até lá?


Escrito em 09/03/2020

por pensar que estava vivendo
e que momentos valiam mais que poemas
dei um tempo

mas o relógio da poesia
tal qual o coração
não para
se para, morre
e vivo, sente

sente vinte e quatro horas
o espanto
a ternura
a euforia
a voz calada à força

e no silêncio fingido
a poesia continua
pulsando muda
como o sangue
que discretamente passeia
pelo corpo inteiro

Abelhas

Publicado em 09/09/2015

Não morremos quando o corpo deixa de funcionar. A morte começa na primeira fatia de coragem perdida. Na juventude, traiçoeira. De repente acordamos cedo para conseguir dinheiro e lutamos para sobreviver, mas não cantamos com a mesma força e nem nos deixamos consumir pelo que realmente importa. Saio de casa séria com meu vestido vermelho e óculos quadrados para selecionar notícias. Sinto falta das gargalhadas despretensiosas, já nem me embriago mais. Tenho ao meu lado uma aquariana com sede de vida que felizmente se embriaga por mim. As atitudes pesam como uma cena de cinema que custa um milhão de dólares para mudar. E então decido que levarei a vida como quem escreve um livro, rabiscando e reescrevendo, rasgando, jogando fora os erros. Mas nesse exercício também recai o peso do perfeccionismo e por fim estou tão obcecada que tudo me parece errado. As palavras estão fora do lugar. Dos modos metafóricos de levar a vida, me agrada mais a sugestão de Rilke: “Assim como as abelhas juntam o mel, reunimos o que há de mais doce em tudo e o construímos. É com o que há de menor, com o que há de insignificante que começamos”. Essa é a única razoabilidade da vida, nossa salvação. Vejo fotos antigas e sinto inveja de mim, tão sorridente com meus cabelos longos. Sei que a alegria inocente de outrora não me pertence mais, mas a ausência de reconhecimento é a prova da transformação. E as coisas que ganhei nesse meio tempo? A consciência de que nunca estarei pronta, ainda bem. Como me disse André Rodrigues, só os despreparados sobrevivem ao amor. É por isso que as crianças ainda detêm as verdadeiras virtudes. Encantam-se com as cores das bolhas de sabão e flutuam no ar como elas. E nós, grandes tolos e tolas, estamos apressados demais nos preparando para o abatedouro. Tão contidos e cerimoniosos, caminhamos lentamente para a morte discreta dos que deixam de viver.  

Para refletir sobre a passagem do tempo: Lista, de Oswaldo Montenegro.

"Que Deus conforte seu coração triste"

Publicado em 09/09/2015

A fala de mamãe ecoou dentro de mim e quando acordei de madrugada já não sentia nada. Foi como se uma bolha rígida e grande tivesse se apoderado do meu coração, impedindo inclusive que ele batesse forte demais, como nos surtos de desespero. Havia agora uma camada protetora, um limite que não me deixava explodir. Aos poucos um ruído agudo tomou conta dos ouvidos e todos os sentidos se tornaram limitados. Aquelas palavras foram como um sedativo natural. Horas depois acordei e tomei um banho, ainda doía, mas agora era suportável.

I’m ready, my Lord

Publicado em 26/03/2017

No colégio interno diziam que para ser salva eu teria que abrir mão de quem eu era. “Cada um tem uma penitência, escolhida por Deus” e o meu desafio nesse mundo era não ser eu. Alguma coisa continuaria presa aqui dentro, como o pássaro azul no peito de Bukowski, e minha função enquanto ser humano seria mantê-la inerte, imóvel. Era esse o preço da eternidade.

O artifício da religião é a culpa.  E a gente só domina a consciência, só se livra do peso quando aprende que há muitos caminhos possíveis e que nem mesmo as crianças acreditam mais em verdades absolutas. Outro dia Mellina, minha afilhada de cinco anos, me perguntou se pontes também eram feitas para gente ou só para carros e fiquei sem resposta. Depois, no carnaval, da janela do hotel em Belo Horizonte eu vi o Viaduto Santa Tereza tomado por foliões e senti vontade de ligar para ela e dizer que sim, as pontes também são feitas para gente (pelo menos no carnaval).

Tenho fé que minha razoabilidade veio depois de ler Vinícius relativizando o infinito. Ele usava amor como argumento. O mesmo amor que me fez reconsiderar a salvação. Em algum momento passei a acreditar que ela se deitaria ao meu lado na cama. Na verdade, minha crença alterna entre isso e entre pensar que nunca estarei a salvo. Mesmo no auge da desilusão - cheguei ao ponto crítico em que a simples possibilidade de aproximação causa desconforto - imagino momentos de trégua com minha respiração noutras costas. Imagino uma cena de filme francês, os olhos atravessando o salão no meio da festa e a certeza de ter encontrado minha pessoa no mundo.

Segue a todo vapor a necessidade de uma liberdade que pressupõe solidão. Não a solidão permanente e impenetrável, mas a solidão como medida, como regra. Há quem diga que o ceticismo é melhor do que a ilusão. Se for assim, estamos bem. Haverá momentos em que somente a ausência de expectativa nos trará paz. É preciso entender que dias, meses ou anos serão perdidos no que diz respeito às relações humanas. Mas mesmo o fracasso deve ser respeitado e compreendido como um elo já que nossa maior semelhança sempre foi a fraqueza, a insignificância. Do amor, não espero menos que a salvação. Por isso canto em consonância com a voz rouca de Cohen, I’m ready my Lord. 

Acesso restrito


[escrito em 01/11/2016]

Hoje acordei me sentindo um corpo. Então me levantei ajoelhada como ensinava o colégio interno há seis anos e roguei para que meu espírito falasse mais alto porque aquele pequeno sussurro não era suficiente para fazer com que eu me sentisse mais do que uma carcaça. Escrever é tatear palmo a palmo o próprio buraco. Existe uma espécie de movimento circular em volta de cada ser humano, as coisas entram e saem o tempo todo. Por isso tem gente correndo no asfalto à uma da tarde. Por isso, nesse exato momento alguém compõe uma canção.

Na casa onde cresci havia uma cisterna de onde os adultos sempre nos diziam para manter distância e era tão inútil porque pulávamos em cima dela inocentemente ignorando os riscos que sequer conhecíamos. E fazíamos isso com a alegria e a aventura de quem quebra um protocolo. É engraçado como quase sempre o medo envelhece conosco, ele cresce, toma forma e passa a ser o único filtro entre o fazer e o não fazer. Naquela época eu pulava na tampa de cimento e agora, agora a impressão é de que estou dando voltas sem nunca pisar em qualquer lugar que possa desabar. Olho para dentro e vejo cones unidos por fitas zebradas e uma placa gigante de acesso restrito.

Devo ter me apegado ao ditado que diz que não podemos nos proteger dos outros e sim da nossa própria dor. Mas insisto, insisto e acordo às cinco voluntariamente e repito até perder a conta que - eu não vim até aqui para me silenciar. Cresci tanto no último ano que não sei onde minha criança foi parar, posso avistá-la brincando do lado de fora de mim. Estou rígida e tenho seis planetas em capricórnio. Minhas mãos sangram e só consigo ignorar. Eu não vim até aqui para fugir. Faz poucos dias, eu dizia, com os pés descalços e um microfone na boca, que nada estará perdido enquanto houver um único suspiro em nome do amor. É preciso não esquecer isso, mesmo quando faltar amor e ar. Só assim estaremos a salvo.

Eu não cheguei aqui para me esconder atrás do silêncio.

coragem

a quem emprestas teu bendito nome?
que movimento sagrado é digno de ti?

quantos passos é necessário sair do lugar
ou quantos dias devo me manter firme
para que me recebas de braços abertos?

[17/02/2019]


os lírios dançam


alecrim, 1/9/2018





https://www.youtube.com/watch?v=3p4MZJsexEs


sem data

recuperado do gravador em 061217 às 2257

cansei de ser água doce
me deixa ser o mar
para que você possa ser o rio
e correr em minha direção

e se misturar ao meu sal
o sal do meu suor
o doce dos meus olhos

o amargo
o amargo de ser eu


POEMA PARA DRUMMOND: CONTORCIONISMO

Publicado em 22/11/2017

amar na primeira estrofe

o barulho na escada
do coração rangendo
nesses tempos
em que provisoriamente
não cantamos o amor

tudo ainda passa num minuto
e o lamento final
é uma pedra correndo muda
na enchente que invade a rua
e refaz o caminho

da saudade da sede itabirana
da coragem dos homens e mulheres
que não se negam a sonhar

pra você
que está em tantos os lugares.
no poema, na bahia, na estante.
no sentimento do mundo,
numa cidade qualquer.

pra você que mora na estátua
de cento e cinquenta quilos,
nas veias,
nas janelas,
entre cafezais e sonhos
como um poema que aconteceu.

nada menos que a eternidade.
Publicado em 09/10/2017

tenho uma tendência crônica a desistir de tudo. às vezes desisto dos dias, sempre depois da metade. o sol de antes do meio dia ainda é forte o suficiente para o surgimento da esperança. a insistência no sofrimento que dá vida sempre me acompanhou. a necessidade do belisco atestando a realidade. gosto de parar quando percebo que chegou. o primeiro fio de pensamento sobre a mais remota possibilidade de desistência. um esqueleto de argumentação, os embriões dos motivos tomando forma e o estopim. vamos jogar nas cartas qual será o estopim. lembro de quando havia finais felizes. todo o texto caminhava para um rumo, de repente, mudava abruptamente de direção para regar a esperança. como quando eu não quero sair, mas desisto de última hora e coloco a roupa mais bonita pra te acompanhar. talvez ainda haja tempo para não desistir dos finais felizes. talvez ainda não seja hora de pensar no fim.

00:45

Publicado em 22/09/2017

tem seu gosto
e tem o cheiro do seu gosto

tem os nossos dias
e a cor dos nossos dias

o humor
a trilha
a receita
a cozinha

quero nos destrinchar mas não consigo
me desmonto pra ver certeza em cada parte
pra ver você em cada parte

nossa escada
nosso edifício

você não faz ideia
da força
da base
que nos une

eu sempre estarei aqui
Publicado em 22 de agosto de 2017

enquanto o mundo cai
eu só penso nas suculentas que você quer colocar no banheiro
eu lavo a louça ouvindo repetidamente estrela estrela que você quer aprender


dia sete

Publicado em 12/07/2017

meu amor,

nunca saberei sua real extensão porque conosco acontece o mesmo que ocorre à história diante dos grandes acontecimentos. é impossível ter noção da importância dos fatos quando  quando se está dentro deles. espero nunca saber seu real tamanho porque você insistirá em ser um grande acontecimento dia após dia e eu insistirei em permanecer dentro de você de todas as formas possíveis. você é o maior acontecimento e para nós isso basta. basta também que eu meça seu tamanho de perto, o formato dos seus dedos, a textura ressecada da tua boca no inverno, os caracóis iluminados do teu cabelo e todas as coisas que seria impossível mensurar a um passo de distância. que seja sempre assim. que deixemos por conta dos outros qualquer análise que exija um grau mínimo de impessoalidade. que sejamos responsáveis apenas (por nós?).

casca

Publicado em 25/06/2017

0. introdução
se alguém disser que ama sua fraqueza estará mentindo. ninguém quer percorrer o universo incerto para além da casca dura que você passou anos construindo. por dentro sangra. por dentro não é tão bonito.

1. a lembrança
posso sentir o atrito. a pele do joelho raspando com força e acidentalmente no cimento do chão do quintal. na infância eram esses os tombos que agora servem de metáforas para outros maiores e mais doloridos não tão literais porém mais letais. passada a dor, havia a urgência e emoção em tirar a casca, matar a ferida. romper o curso natural de cicatrização e correr o risco de encontrar algo desagradável por baixo da crosta. ainda hoje carrego resquícios dessa urgência.

2. a camada
mas aqui entramos em outro ponto, que é na verdade o foco deste devaneio. a casca. a facilidade e a naturalidade com que fazemos isso na infância. coragem.

3. a origem dos tombos
grande parte dos tombos foi em momentos de alegria em que não era possível evitar o auto-atropelamento. pés se embaraçavam na pressa. a rapidez acompanhava a empolgação por qualquer coisa hoje idiota.

4. internato
ainda lembro como se fosse hoje. quando cheguei no colégio interno, fora os adventistas, as pessoas, no geral, eram conhecidas pelos seus erros. cada um foi mandado para lá por um motivo específico, para "consertar" alguma coisa. por causa dos nossos erros nos encontrávamos. estávamos todos no mesmo balaio-humano-errático. ainda estamos.
Publicado em 25/05/2017

Eu nunca soube o que é a dor da morte e continuo sem saber. O grau de tristeza das tragédias depende do quanto não esperamos por ela e vovó nos preparou bem demais para tudo. Anunciou de um jeito doce sua partida e se despediu de um por um. como nos despedimos. Graças à minha memória fraca, não me lembro exatamente do que falamos naquela segunda-feira além do gosto das comidas do hospital e como sua pressão havia se comportado na noite anterior. Quase desperdicei minha despedida. Cheguei a pedir papai que dissesse a ela que por conta do cansaço deixaria a visita para amanhã. Mas naquela tarde o sono não veio e tive medo de tê-la amado pouco, ou de pensar nisso quando ela fosse embora. Não tinha nada nas mãos além de amor e um doce de leite mineiro que comprei no aeroporto de Belo Horizonte. Também lembro de ter hesitado sobre o doce. Como ia dizendo, não sei de que assuntos falamos, mas lembro de caminharmos no corredor do hospital a passos lentos, ela com a mão sobre a minha, essa seria a última vez que eu andaria devagar. Andar correndo é um habito que até hoje só abandonei quando estive ao seu lado. nesse momento a cortina amarela balança com o vento e quando o sol movimenta as sombras dentro do quarto, chego a pensar que vovó está dançando ao meu lado enquanto falo sobre ela, mais uma vez. 

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