No início da descoberta da doença de minha mãe, me empenhei na leitura de artigos científicos, reportagens, entrevistas, tudo que encontrava pelo caminho a respeito do assunto. A suspeita inicial era de que se tratava de um pseudomixoma peritoneal, ou um adenocarcinoma. E assim, da noite para o dia, aquela lista de nomes complicados passou a sair da minha boca com uma naturalidade estranha.
Conforme o diagnóstico avançava, confusa e lentamente, e nos aproximávamos mais do câncer de pâncreas, comecei a me dar conta de que mergulhar a fundo nas pesquisas não ajudaria em nada. A cada artigo minha esperança ia minando. E então decidi, pelo bem de todos, especialmente da minha sanidade , abrir mão da ciência.
A melhor resposta, a resposta que eu queria ouvir, veio da boca de Lyz, a cartomante. Sim, minha mãe ficaria bem. Um sim, qualquer sim, era tudo que eu precisava para seguir. Segundo Lyz, haveria um processo de reabilitação, alguém voltaria para casa (como eu estava voltando eventualmente). E no final, o mais importante: ela ficaria bem.
Essa resposta me custou cinquenta reais. E me agarrei a ela muito mais do que aos artigos e toda a literatura científica. A esperança não custa caro. Por isso, decidi ignorar que o “ficar bem” de Lyz poderia ter outros significados subjetivos. Ficar bem em outro plano, quem sabe? As cartas acreditam em reencarnação?
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Estamos no hospital onde eu nasci, Hospital Santa Helena. A largura dos corredores denuncia a idade do lugar, mas alguns ambientes reformados e bem iluminados dão a impressão de que tudo aqui é novo, como a recepção em que eu e meu pai esperamos por um sinal do médico.
Não tenho nenhuma lembrança desse hospital. Não sei se voltei lá depois de nascer. A única imagem que tenho é de minha mãe sendo repreendida pelo médico por ficar em pé antes da hora, depois da cesariana, pra me dar de mamar. Ela já me contou isso algumas vezes, mas não sei que cara tinha o quarto, qual a cor dos lençóis ou da roupa cirúrgica que ela usava.
Hoje ela faz a segunda videolaparoscopia. Por meio de pequenos furos em sua barriga, o médico introduz um laparoscópio, que é um tubo metálico com uma câmera na ponta, para que ele veja exatamente como está por dentro seu abdômen. Também estão sendo coletadas novas amostras para a biópsia, já que o primeiro exame fora inconclusivo.
Três ou quatro horas depois, o médico aparece na recepção e nos diz que o câncer se confirmou, mesmo antes do resultado da nova biópsia. Foi o que as microcâmeras que entraram dentro dela mostraram. As amostras de cinco lugares diferentes já estão a caminho do laboratório. O tipo de célula determinará o tipo de tratamento. Ainda não sabemos se o próximo passo será uma cirurgia ou o início das quimioterapias.
Eu e papai nos olhamos, agradecemos a empatia do médico e tentamos nos agarrar às notícias positivas, embora elas quase não existam. Ele usou a expressão “pouca doença” e repetimos isso para nós mesmos até nos convencer de que seria um pequeno problema e seríamos fortes o suficiente para lidar com tudo.
Minha mãe sai da sala de cirurgia e vai para o quarto, onde a espero.
Enquanto ela dorme na maca com sua roupa verde água de hospital, o chão do quarto treme de forma compassada, quase como uma respiração. Acho que estamos em cima de alguma casa de máquinas. Nunca soube que havia casa de máquinas em um hospital e nem que poderia ser sentida tão intensamente.
Durante o efeito da anestesia geral, ela sonhou que atravessava três grandes rios. E quando tentou pegar um atalho foi avisada de que o caminho mais curto não tinha saída. Ele não levaria a lugar algum.
Um a um, ela ia atravessando os três rios, separados por faixas de areia.
Conforme ela atravessava os rios, eles transbordavam rapidamente e ela percebeu que não seria possível voltar pelo mesmo caminho. Uma voz confirmava que era mesmo um caminho sem volta, por isso não haveria outra escolha que não fosse seguir. Em frente, sempre em frente.
Além dessa voz que ditava as regras, havia também a minha voz. Na verdade, não apenas a voz, eu estava inteira ali. E meu papel, segundo minha mãe, era guiá-la na travessia. Dizer onde pisar, qual o melhor caminho, que fosse por ali e não por aqui.
À primeira escuta, tudo parece muito bonito. Alguns minutos depois já não sei se estou pronta. Acho que não vou conseguir.
O lugar de onde saímos quando tudo isso começou não existe mais.